*John Hopkins Hospital (contagem portuguesa de mortes por covi19 a 17/02/23)
Depois de dois anos de pandemia covid-19 e o encarceramento das populações e das suas economias, ninguém aprendeu nada. Foram anos de oportunidades perdidas. Por isso, não vale a pena ser simpático com nada nem ninguém. Não, não quero a normalidade antiga. Não quero a poluição do mundo Antes do Confinamento (A.C.), não quero o esterco do turismo massificado, da especulação imobiliária, uma cidade (re)criada para os seus não-residentes - o que significa uma reestruturação social e económica, desde os transportes públicos às lojas ou até a forma de realização dos mercados de edição independente, como planeava uma Raia fazer no 25 de Abril de 2020 para apanhar a estrangeirada e que não aconteceu pelo óbvio.
Foram anos de quase pureza e expurgo. Ou talvez não, ninguém aprendeu nada ao continuar a comprar "bens essenciais" à Amazon ou por ser preguiçoso demais para cozinhar, preferindo mandar vir MacMerda pelos Ubers da vida. Antigos saberes estão sempre a perder-se, diz-se, o mais simples deles todos é que "o barato sai caro". Esse "barato" que já nos está a sair dos nossos bolsos incluindo para aqueles que não usam voos "lowcost", "air'n'b" ou ubers. Aliás, agradeçam ao turismo lowcost pela pandemia se ter propagado pelo mundo. Agradeçam ao consumismo desenfreado por desencadear estas doenças - ninguém quer assumir que é isto que cria estas desgraças e não uma conspiração do reptiliano chinês que nos quer matar a todos e ganhar guito comercializando vacinas logo a seguir.
E sobretudo agradeçam aos ricos para terem trazido a doença para Portugal. Ainda havia a esperança, o dado público que o segundo morto por covid em Portugal tinha sido o Presidente do Santander - que foi esquiar para o norte de Itália - e que o bicho só batesse no patriarcado branco velho com pasta. Nada mais errado...
Cerca sanitária
Não podíamos sair de casa ou se quer do concelho mas turistas manhosos passaram pelos aeroportos sem um único teste ou quarentena...Seja como for não foram anos de viagens a certames estrangeiros.
A.C. a Imprensa Canalha e Gonçalo Duarte estiveram no Tenderete (Espanha) e a Chili Com Carne no Festival de BD de Angoulême (França). "Ponto final" para dois anos, embora não seja de ignorar a Jornada de Banda Desenhada em Português na Maison des Sciences de l'Homme, em Clermont-Ferrand (França), evento académico com uma comitiva grande de portugueses e o Filipe Abranches que esteve no Festival de BD de Varsóvia, isto só em 2021, claro.
Em compensação a norte-americana Aidan Koch (A.C.) e o francês Edmond Baudoin passaram por Lisboa, cortesia da galeria / livraria Tinta nos Nervos, que manteve uma programação audaz de exposições - não esquecendo o regresso de André Lemos a estas lides. Em 2021 trouxeram o finlandês Tommi Musturi.
Num ano em que não houve o festival de BD de Beja e da Amadora, o que aconteceu? Nada! Ninguém deixou de aprender mais sobre BD por eles não terem feito as suas exposições promotoras de "loureados", melosos e betos. O Festival de Beja, em 2021, trouxe o espanhol Bartolomé Seguí e o francês Vincent Vanoli, o Festival da Amadora nada de jeito, só uma cambada de mercenários franco-belgas sem interesse, já para não falar da fábrica das sessões de autógrafos deste certame que era uma verdadeira festa da mangueira. Do que vale de muito ter mulheres como directoras deste festival? Lembrando que o covid em 2020 salvou o festival de passar a vergonha de ter um "date-rape" com as exposições dedicadas ao Drácula, Druuna e Luís Louro... Em 2021 a "nossa" Ana Margarida Matos safou este festival de não parecer um anacronismo dos anos 80, ainda assim a organização apresentava-a como "uma miúda e a sua primeira exposição". Espero que se tenham engasgado quando a "miúda" começou a aparecer em tudo o que era jornais, rádio e TV.
Internacional
Se a consequência maior que trouxe o covid foi este cancelamento dos eventos, o que não é propriamente mau se pensarmos nos certames de "bedófilia", mais grave terá sido para os editores independentes e os seus mercados. Sendo que as edições que produzem a maior parte das vezes não estão em sítios oficiais - como livrarias - criou-se este padrão de produção e consumo: os artistas só (auto)editam publicações para estes eventos e sem eles não faz sentido sequer produzi-los. O problema vem de trás, do sucesso da Laica (2004-12) seguido pela Morta, Raia, etc... que criaram este vício. A maior parte dos editores de zines e afins foram incapazes de alargar o campo de leitores e da distribuição nestas últimas décadas sem ser por estes "grandes" eventos. Talvez tenham esquecido de que os fanzines eram internet "avant-la-lettre" quando apareceram nos anos 30 do século passado. O seu sistema colaborativo incluía contactos de outros fanzines ou nos envelopes dos zines em que caíam à barda "flyers" e outra papelada efémera sobre os zines ou bandas ou distros. É certo que o que escrevo já não faz muito sentido (embora ainda hajam subculturas que o façam) mas também não sei qual seria a alternativa. Só acho estranho que apesar das redes sociais permitirem uma difusão muito maior do que o clássico "papel", parece que tudo bloqueou sem nenhum rasgo de génio ou um pensamento alternativo.
O que não é de estranhar é que muita da produção nacional passou pela edição estrangeira, provando que há mais estruturas funcionais lá fora do que cá. Desde a edição em polaco de livros como Kassumai de David Campos e Salazar : Agora na Hora da Sua Morte de João Paulo Cotrim e Miguel Rocha, História de Lisboa de A.H. Oliveira Marques e Filipe Abranches e Selva!! de Abranches, Tu és a mulher da minha vida, ela é a mulher dos meus sonhos de Pedro Brito e João Fazenda (na verdade uma reedição na Polónia, caso inédito!), O Amor Infinito que te tenho de Paulo Monteiro na Turquia, O Cuidado dos Pássaros de Francisco Sousa Lobo em França, tudo isto em 2021; livrinhos inéditos de Hetamoé, Joana Estrela (2020), Ema Gaspar e Dileydi Florez (2021) na colecção mini kus, cuja "antologia-mãe", š!, publicou Ana Maçã, André Lemos, Cátia Serrão, Daniel Lima, Francisco Sousa Lobo e Joana Mosi (2020) e ainda Ivo Puiupo (2021). Lobo também publicou na revista C'est Bon (Suécia), Patrícia Guimarães na eslovena Stripburger - com direito a um ensaio sobre a sua bd, outro facto inédito! - e Rui Moura participou na Wobby (Holanda) e na croata Komikaze (2021). Bruno Borges, em 2021, tanto lançou um inédito na Austrália - Comics to the end of the world - como viu A Abolição do Trabalho, de Bob Black, editado no Brasil. Também participou em Opposights, colectânea de artistas australianos e portugueses a reflectirem sobre a BD, em que incluia ainda Pedro Burgos, Rui Moura, Hetamoé, Gonçalo Duarte, Amanda Baeza, Cátia Serrão e Mariana Pita. Borges, Serrão e ainda Diniz Conefrey, Sara Frágil, Carolina Martins com João Carola e Pedro Moura com João Sequeira, participaram em Autofagia, uma antologia do Brasil de BD abstracta...
Nunca houve tanta internacionalização, mostrando que é mais fácil publicar lá fora do que nas miseráveis editoras portuguesas ou deve-se interpretar que a qualidade destes autores cresce a nível internacional? A verdade é que Hetamoé teve direito a estar incluída nos "melhores do ano" no The Comics Journal, a "Bíblia da BD", outro facto inédito!
Diários do Corona
As edições em Portugal previstas para serem repartidas durante o ano inteiro tiveram atrasos, claro, passando-se quase oito meses sem novidades, tirando publicações que já estavam a ser impressas apanhando o fecho da vidinha em Março. Foi o caso da antologia Pentângulo #3, da Ar.Co. e Chili Com Carne mas o "pior" terá sido para o impressionante número dois da revista cultural Bestiário - que incluia uma BD de André Coelho que em si já seria um livro de BD! O "Monstro" (tema desse número) tinha 656 páginas superiores ao A4, imaginem a loucura de ter este "monstro" cá fora com tudo fechado. Em 2021, saiu pela editora Bestiário um álbum luxuoso de Coelho, Mnemosina.
Antes de tudo fechar a Chili Com Carne editou o livro/ disco eye18 dos Krypto (melhor banda portuguesa se pudessem ter incendiado os palcos em 202) com BD de Rui Moura e Paricutin de Gonçalo Duarte. Depois quando o país reabriu avançou com livros de Rodolfo Mariano, Tiago Manuel, Ana Margarida Matos e Francisco Sousa Lobo - este último lançou a sua publicação Palácio. Mantiveram-se a lançar novos números, os zines Shock em eterna homenagem ao Estrompa (1942-2014), Olho do Cu (e com um especial Salteador de Caralhos de Carlos Carcassa), Rodolfo Mariano com o MALS #00 (número 2), Lucas Almeida com O Hábito faz o Monstro e Planeta Satélite de Ricardo Baptista e a revista Umbra. Saiu O Filme da Minha Vida com Joana Mosi, Venham +5 e colecção Toupeira, da Bedeteca de Beja, em 2021. O Mesinha de Cabeceira voltou com André Ferreira e numa atitude "back to the basics", ou seja, zine de poucos exemplares. Melhor ainda foi o regresso do Opuntia Books de André Lemos, com tiragens menores mas com um rigor de qualidade que sempre teve. O mesmo foi publicado pela Antumbramucomorphia (de Filipe Felizardo) com o vitaminado Sasquatch. De referir também o desenhos compilados em Defects do norte-americano Thomas Grant Stetson pela Black Blood Press.
Inevitavelmente surgiu o fenómeno de registrar as aventuras com o bicho, indo desde o humorzinho em tirinhas de Gente confinada é Outra coisa de Zépestana ao burgesso islamofóbico do Luís Louro compensado pelos espertos Nuno Saraiva e André Ruivo (na onda de cartoon ou desenho), o experimental Hoje Não de Ana Margarida Matos e os dois volumes de Diários do Corona de Bruno Borges, co-editado entre O Gorila (de Borges) e a nova Fojo (de Pedro Nora), os dois volumes abarcam o início desta loucura pandémica incluindo os problemas laborais, as responsabilidades paternais, o absurdo da 'net, a casa com ratos e finalmente voltar a uma normalidade no Norte de Portugal, seja lá o que isso quer dizer. O desleixo de Borges é algo irritante, sabendo que ele poderia ser mais "comunicativo". Mas vale a pena ser mais formal num ausência de mercado A.C. ou Depois Covid? Quem liga a bonecada?
Ninguém liga! Dois projectos morreram em 2020, sem festas nem homenagens, foi-se a editora "só para gente bruta" MMMNNRRRG que desde 2018 já tinha anunciado a sua morte e a "não-binária" Sapata Press. Apesar da radicalidade de ambos os projectos (ou justamente por isso mesmo) ninguém se importou com os falecimentos, tirando uma entrevista à MNRG pelo sítio em linha Bandas Desenhadas.
Dois nascimentos em 2021 para compensar estas perdas: a Magma Bruta com edições em risografias de meter inveja a qualquer produção mundial, João Silvestre e a sua parceira emigraram para Hamburgo e de lá fizeram um projecto de sonho - porque é que nunca o realizaram cá? Eu não sei...; e claro, a Sendai, editora especializada em Gekiga para nos salvar da modorra Manga para crianças que se edita neste país, talvez pelo responsável ser brasileiro que só assim que foi publicado Hideshi Hino ou Imiri Sakabashira.
O Clube do Inferno passou a ser MASSACRE, é o mesmo núcleo de artistas sem o Astromanta, mas já lá iremos... Desde já pode-se dizer que lançaram três maravilhosos livros, dois deles da autoria de Mao.
Digital sickness
Foram anos de consumo digital - fosse pela compra digital de bens e serviços com o fecho das lojas, incluindo o crime de não considerar as livrarias como fornecedoras de "bens essenciais" apesar de termos um Presidente da República que ganhou eleições à pala de ser um dito ávido consumidor de livros. Esse fecho de estabelecimentos fez com que se pensasse novas formas de organização para resistir aos grandes (Wook, por exemplo) tendo nascido RELI - Rede de Livrarias Independentes Portuguesas.
O consumo de cultura por Internet foi um fartote mas pouca coisa será de lembrar como "arte" (pelo menos na BD), a única surpresa digna de nota da BD portuguesa no mundo virtual foi Forceps de Ricardo Paião Oliveira, no já referido sítio Bandas desenhadas.
Claro que ninguém irá esquecer-se das videochamadas em que pessoas não conseguiam retirar filtros/máscaras de gato virtuais ou de serem apanhadas a baterem punhetas em reuniões porque tinham a câmara ligada. Por cá, houve a galhofa total da Feira Gráfica e os seus vídeos de scandales de galeria. Sobre a Gráfica, digo apenas como um representante da cena editorial "indie" de que não precisamos deles para ter inspiração ou motivação no ano fora do normal de 2020. E muito menos precisamos de um slogan de merda (olha a pérola: Continua a publicar!) que só diz que quem organizou o evento mais risível do ano não fez um mínimo esforço de discutir ou solucionar o problema principal da edição "indie". Não é a publicação per se que corre risco de "morrer" por causa do covid19 mas é a distribuição dela que era preciso "resolver". Os intermediários NUNCA ajudaram este meio. Quem nunca percebeu que curadores, merchants, lojistas ou galeristas NUNCA fizeram parte da equação de quem luta como editor independente, aliás, sempre fizeram parte do problema. Também ninguém percebeu um caralho o que foi a Feira Laica e outros eventos idênticos em que a horizontalidade definia os eventos e não uma selecção vertical. Tudo ainda pior, quando mete uma Câmara Municipal de Lisboa que nada oferece de cultura aos seus munícipes desde que apareceu o rentável turismo de massas. Esta meteu dinheiro nos "curadores" para salvarem a "cena", ofereceu um espaço digno para dar nas vistas sem sujar as mãos e o streaming fez o espectáculo imundo que os aficionados da 'net querem. Foi demais! Em 2021 os "curadores" chatearam-se mais uma vez e morreu a Gráfica. Ámen!
De forma dissimulada, na BD de Mariana Pita publicada no já referido Opposights, uns "fofinhos" dizem tudo:
O Tiago Baptista é que foi esperto, lançou o seu fanzine de Skate num parque abandonado da EMEL. Assim ao ar livre, com uma toalha para piquenique pôs à venda o Skate Snake Zine e mostrou documentos seus ligados ao Skate. Um evento underground que fugia às paranóias higiénicas e à licença comercial - novamente era num espaço ao ar livre que permitiu o encontro de várias comunidades: malta da edição, malta do desenho e malta do desporto radical - e sim, havia skates para iniciados darem tombos. Como escrevi anteriormente, os zines e afins não podem estar apenas ligados "comercialmente" (distribuição) a "eventos grandes". Não é só por causa de uma catástrofe como foi da pandemia que se perde o canal de distribuição. Não pode haver um canal apenas mas vários, é a sua obrigação assumir-se uma figura de propagandista, de procurar novas pessoas que ignoram que os novos autores de BD são interessantes ou melhores que o lixo das editoras comerciais. Se cada editor "indie" não procurar novas formas de distribuir ou divulgar o seu trabalho (e por consequência de outros colegas seus) irá pregar apenas para os convertidos e colocar o termo tecnocrata na sua produção: "nicho". Palavra que anormais por aí adoram empregar para desprezar a produção deste mundo editorial cheio de Arte. Obrigado ao Tiago por esta lição de humildade.
A incapacidade de adaptar às mutações legais-higiénicas do Covid, em que dia para dia mudavam regras de acesso aos estabelecimentos comerciais atrapalhou a Raia que só em 2021 conseguiu fazer uma feira de manhã até às 15h30, em Junho. Em Dezembro foi o fiasco Parangona na ZDB, desta vez porque a galeria aceitou ter um mercado de editores mas não prescindiu de ser clube ou casa de espetáculos, obrigando ao público a testes de detecção do vírus, numa altura que se demoravam horas de espera nos centros de testes. O público retraiu-se, as vendas dos editores foram quase zero!!! A ZDB pareceu uma criança que ganhou um brinquedo mas que não quis partilhar com as outras crianças. Triste.
Houve o regresso da Necromancia Editorial em Guimarães, o primeiro evento de edição independente depois do isolamento de 2020. A vida realmente voltou aos poucos no ano seguinte e destaco o que aconteceu no Porto, a gente esperta de lá soube contornar as confusões legais usando vários espaços no Perímetro. E também de referir a Feira Anarquista do Livro em Setembro num descampado lisboeta - onde se encontrava uma BD em português sobre as prisões pelo italiano Zerocalcare; e o MAL, Mercado Aberto do Livro, uma reação aos excessos de cartazes de ilustração em serigrafia ou risografia das outras feiras, e portanto apostou com sucesso no formato... livro!
Por fim, voltando à questão da falta de eventos em 2020, não havendo Amadora nem Beja, não deixou de haver boa programação e uma distância às organizações "bedófilas" que são as que menos arriscam em artistas novos ou ideias novas. Assim ainda A.C. nascia o colectivo MASSACRE com uma exposição intitulada Loot Box que era inaugurada em Janeiro na Biblioteca da FCT NOVA (Monte de Caparica), longe das pranchas nas paredes, os três artistas, André Pereira, Hetamoé e Mao preparam instalações, desenhos e vídeos que transpunham a ideia a ideia de "narrativa gráfica", a lembrar esforços do passado como o Zalão de Danda Besenhada (2000). Adiada com a pandemia, surpresa incrível a exposição de Rudolfo com uma retrospectiva na Galeria Municipal do Porto e o seu belo catálogo. Se pode parecer estranho uma retrospectiva de alguém tão novo, digo só que a quantidade da produção - sempre ignorada pelos festivais "bedófilos" - é superior em quantidade e qualidade até do que alguns "cromos" que são defendidos nesses festivais "especializados". Houve também o VAST/O de Carolina Martins e João Carola no Banco das Artes em Leiria e seguiu-se outras retrospectiva desta vez do Quarto de Jade, do duo Diniz Conefrey e Maria João Worm, no Museu Bordalo Pinheiro, em Lisboa. E claro, relembro as muitas exposições já referidas da Tinta nos Nervos, suficientes para substituir qualquer programação dos Festivais.
De repente até parece que a BD ganhou um estatuto de arte séria. Foram coincidências apenas, bem sei, estas exposições em museus e galerias. É pena termos de voltar a ir aos festivais de BD para ver exposições, sobretudo quando o que vemos é a papinha fornecida pelas editoras profissionais portuguesas e não produções vindas dos artistas, o elemento que mais sofre no meio disto tudo. Esta subversão comercial afecta a cultura da BD em Portugal, minimizando a ideia de BD a monstrinhos com machados & violações mutantes do corpo feminino, já para não falar da BD "light". Tudo isto tem regredido o gosto nacional aos níveis piores que infantis e juvenis dos anos 90.
Voltem os confinamentos se só assim é que veremos BD em galerias e museus! Embora, convém dizer: foda-se a Gulbenkian com a sua exposição higiénica do Hergé! Estamos num novo milénio, não há melhor para expor? Os vizinhos espanhóis por exemplo preferiram o norte-americano Victor Moscoso, um dos heróis do underground comix, nos seus museus nacionais. É só esta a grande diferença entre betalhada tuga e nostros hermanos...
A Batalha
Lembram-se na greve de fome dos donos de restaurantes? Sim alguém cuspiu numa das mais radicais formas de combate politico nesta nossa sociedade do espectáculo. Idiotas e fachos também os há na BD portuguesa. Mas muitos mais existem os que não o são! Nestes anos de luta social, alguns estiveram em cozinhas comunitárias a servir refeições para os marginalizados da sociedade, outros em manifestações contra o racismo e outros a defender a Seara – Centro de Apoio Mútuo de Santa Bárbara - podem ler sobre o assunto em BD n'A Batalha #288/289, autoria de Gonçalo Duarte, sobre mais um episódio de destruição capitalista em Lisboa.
Nesse mesmo número publicou-se ainda uma BD do mestre espanhol Max com uma obra nova sobre este Manifestamente Anormal curso dos governos na gestão da pandemia. Todo esse número deveria ser obrigatório estar nas casas das pessoas pela sua lucidez. No #292 outra jóia de BD, desta vez do polaco residente nos EUA Tom Kacznski sobre a farsa do empreendorismo. Um dos autores mais inteligentes do momento com uma tradução em português. Obrigado Batalha!
Foi o único jornal que pensou invés de ter notícias sobre como fazer pão e aturar a puta da família que ajudaste a criar, fucking breeder, que desmontou o jogo dos governos. Na grande imprensa só se apanhou modorra burguesa, onde não havia pensamento dos sem-abrigos, vendedores, artistas e músicos de rua ou dos emigrantes em casas sobrelotadas. O enfado mórbido da classe média em que o trabalho é vida e vice-versa, foi emocionante. Tiveram de comprar livros e discos como nunca, alguns até aprenderam a ler se calhar... As vendas em linha subiram com as lojas fechadas. Tudo ficou à espera de reaberturas, e no meio deste fogo a Snob mudava de morada e continua a ser aquela livraria "generalista" que apoia a edição independente com unhas e dentes. Obrigado a eles por venderem bons livros.
Pelo Monde Diplomatique foram dois anos de BDs publicadas de alto nível artístico com trabalhos de Hetamoé, Sara Boiça, Tiago da Bernarda, Ana Biscaia, Rodolfo Mariano, André Lemos, Cátia Serrão, André Pereira, Alexandra Saldanha, Mao, André Ferreira e Rudolfo.
Digital outra vez, pá!
É sabido que a cultura sobre BD não é dieta dos portugueses, até mesmo por aqueles que a consomem. Longe vão os anos 90 quando a revista Quadrado + distribuidora Neuromanso + Salão do Porto divulgaram a Fantagraphics ou Drawn & Quarterly. Ou se pensava na BD no fanzine Nemo ou na década seguinte, na revista Satélite Internacional ou no livro Sobre BD de David Soares. O espaço de divulgação aumentou com a 'net mas diminuiu quem divulgue de forma crítica, informada, adulta e reflexiva. Terreno vago em que transitam badalhoquices e tentativas bacocas de "influencers". Nada que faça abrir mundos. Com bicho covid ou sem ele, quase nada mudou neste panorama da referência ou crítica. Só meia-dúzia de curiosidades e apontamentos:
- a revista polaca Zeszyty Komiksowe, sobre BD e que dedicou um número especial à BD portuguesa e brasileira em 2021. Não sabemos o que dizem da cena portuguesa mas topámos o artigo inesperado de Pedro Réquio intitulado A Banda Desenhada enquanto produto das mudanças sociais e políticas em Portugal durante a década de 1970 a ser publicado em português na Revista Libertária um dia destes;
- duas participações portuguesas no sítio de referência norte-americano Solfad com três artigos de Joana Mosi e uma entrevista a Tânia A. Cardoso;
- uma entrevista antiga mas inédita a Carlos "Zíngaro" publicada na Pentângulo #4,
- com o jornal A Batalha parado durante o confinamento, voltei a escrever e a promover alguns livros de BD neste blogue - houve quem ficasse feliz, nunca pensei... Eu é que fiquei feliz pelo regresso, embora nostálgico, de Domingos Isabelinho ao seu blogue;
- Hugo Almeida escreve um brilhante ensaio sobre Yuichi Yokoyama numa brochura que acompanha, a maior parte das vezes, o livro Viagem;
- surgiu (e desapareceu) uma revista de música, Pista, que fez um artigo sobre o Rudolfo enquanto músico, tornando este ano de merda no "ano do Rudolfo", uma vez que toda sua breve vida já ficou toda registada com este artigo na revista e com o seu catálogo da exposição da Galeria do Porto acima referido;
- nos campos gráficos para quem gosta de BD é de referir VelvetNirvana, exposição da colecção particular de António Neto Alves (um cromo?) que aconteceu no Pavilhão Branco do Museu da Cidade de Lisboa onde se viu cartazes do melhor grafismo punk: Gary Panter, John Holmstrom e Raymond Pettibon;
- também pela via museu, focado na pintura houve a exposição de Eduardo Batarda, Great Moments na Fundação Arpad Szenes – Vieira da Silva;
- o mais importante foi a reedição de No Lazareto do Rafael Bordalo Pinheiro, não era a primeira vez que tenha havido uma reedição desta obra importante de 1881 - em 2003 foi a Frenesi que o fez num gesto de coragem que nenhuma editora "bedófila" seria capaz de o fazer. É um diário de viajem, autobiografia, comentário social e político para quem ficou em quarentena vindo do Brasil, isto tudo umas décadas antes do Crumb ou Pekar! Edição da Pim! e Museu Bordalo Pinheiro.
FIM
Entre toda a mortandade neste mundo, houve várias mortes de autores e artistas de BD. Pareceu que estávamos no fim de uma Era dada a importância de nomes como Uderzo, Quino, Sokal, José Garcês e Juan Gimenez - este último, o único falecido com relação directa com o vírus.
De referir também o falecimento do editor Jorge Machado-Dias da Pedranocharco e do BD Jornal.
Mas sobretudo a tristeza chamou-nos por aqueles que nos fizeram crescer artisticamente e intelectualmente como Claire Bretécher, Gene Deitch, Richard Sala, Gary Leib, Ron Cobb e S. Clay Wilson.
Noutra dimensão surreal foi desaparecimento daqueles que publicámos ou que nos eram amigos, Henriette Valium, Ward Zwart, João Paulo Cotrim e Isabel Lobinho.
Neste final de relatório sobre a cena portuguesa, as nacionalidades pouco valem, só os sentimentos íntimos.