sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Mercado português de bd, os autores da realidade e… tudo mais num texto curto!

Apesar da História da banda desenhada portuguesa remontar ao génio incontornável de Raphael Bordallo Pinheiro (1846-1905), o certo é que passadas as “épocas douradas” chega-se aos anos 70 do século XX sem mercado nem indústria de bd. O nosso estado geográfico periférico acompanhado do historial de isolamento imposto pelo fascismo (entre as décadas de 30 a 70) faz com que Portugal seja mais “insular” que continental. É uma metáfora que complementa outra: os trabalhos da bd portuguesa são barcos perdidos num Atlântico que raramente estabelecem laços entre eles ou que encontram uma continuidade de trajecto.

Será justo achar positivo o facto de não termos indústria nem mercado? Por um lado é aflitivo assistir o desnorteio de alguns “autores-capitães” face ao “oceano”, por outro a bd portuguesa não deixa de ter uma riqueza de obras e autores justamente pela ausência de vícios da formatação - um mercado obriga sempre a uma formatação de estilo ou tema! Assim, cada autor português tem encontrado o seu caminho individual.

No que respeita à “bd realista” (tema que interessa para este festival) e encurtando uma História rica e longa, temos desde logo o “pai da bd portuguesa” (Raphael Bordallo Pinheiro) já fazia autobiografia, em 1881, no seu segundo álbum No Lazareto de Lisboa – onde desenha a sua experiência de quarentena regressado do Brasil, essa quarentena era obrigatória para os viajantes que vinham de países onde havia epidemias. Tal como na origem da bd, Raphael eram um cronista sátiro da política de um tempo ainda dividido entre a Monarquia e os Republicanos mas também retratava os aspectos culturais, como o Teatro.

Saltando para os modernistas temos Stuart Carvalhais (1887-1961) e Carlos Botelho (1899-1982). O primeiro inventou a série «Quim e o Manecas» que apesar de seguir a tradição dos rapazes traquinas Max und Morritz tem a proeza de denunciar os acontecimentos do seu tempo como a miséria das ruas ou a 1ª Guerra Mundial. O segundo, entre 1928 e 1950, cria as crónicas Ecos da Semana (no jornal Sempre fixe) que critica e testemunha os acontecimentos culturais, sociais e culturais em bd, fossem uma “Volta a Portugal em Bicicleta” fosse a situação política internacional - em que até Mussolini aparece. Dedicou 22 anos a este trabalho até ao seu desgaste graças à censura do Estado Novo.

Seguem-se duas rápidas passagens pelo tempo. Nos anos 50, tal nos EUA ou em França, os cómics portugueses também tinham um código de conduta. As «Instruções sobre a literatura infantil» (1950). A bd portuguesa tal como no resto do mundo foi transformada num médium destinado ao público infanto-juvenil predominando as duas linhas mais conhecidas de cómics popular: o estilo “realista” explorado no género de aventuras, que no caso português significou na sua maioria cómics enquadrados nos temas de história ou adaptação literária desde que enaltecessem o espírito nacionalista e o estilo caricatural que é usado no humor ou ainda, hibridamente, na aventura humorística. Daqui pouco haverá de interesse para contar. Depois, veio a Revolução do 25 de Abril de 1974 e não faltaram “cronistas-cartunistas” da situação que se vivia.

A liberdade permitiu o aparecimento de uma bd contemporânea perdida durante 40 anos de fascismo. A “primeira geração livre” materializou-se na revista Visão, influenciada pela Pilote e por outras revistas francesas “adultas”. Era, no entanto, um periódico demasiado luxuoso para um país pobre e demasiado vanguardista para um país atrasado. Um oásis impensável. Teve apenas 12 números e um ano de vida (Abr. 75 / Maio 76). Nas suas páginas encontraremos algumas das poucas bd’s sobre a Guerra nas Colónias por Victor Mesquita (1939) e Machado da Graça (que também realizaram outra sobre a guerra do Vietname), e por Pedro Massano (1948).

Os anos 80 são reconhecidos pelo o lento fim dos periódicos dedicados à bd e o começo de mais novas abordagens estilísticas pelos autores portugueses. Os universos abrem-se para questões mais intimistas, urbanas e marginais embrulhadas com grafismos ousados e experimentais. Apesar de serem autores com estruturas narrativas e estéticas ainda tradicionais, gostaria de referir Fernando Relvas (1954) com L123 e Cevadilha Speed, duas obras que tratam com algum realismo fenómenos como a delinquência juvenil, as drogas ou as alemãs no Algarve. Relvas acabou por criar uma obra carismática sobre as novas gerações nos anos 80. Arlindo Fagundes (1955) no seu álbum La Chavalita e o seu personagem “Pitanga, barbeiro a domicílio” escreveu-nos sobre a prostituição e escravatura branca - sobre o tráfico de mulheres portuguesas para bares de prostituição em Espanha, tema que na altura ninguém falava. Esta abordagem urbana e suburbana continuou, uma década depois com “Loverboy”, de Marte (1973) e João Fazenda (1979), histórias de geração dos anos 90, da ressaca grunge, pré-universitários, drogas e Raves. Os autores são precisamente dessa geração dos anos 90 que durante essa década foram influenciados pelos alternativos norte-americanos e a movimentação das editoras independentes, criando entre 1997 e 2001 um verdadeiro boom dos cómics portugueses. Desta fornada que também foi ajudada pela intensa actividade da Bedeteca de Lisboa e pelo Salão Internacional de BD do Porto, que por exemplo mostrou pela primeira vez em Portugal o trabalho de editoras alternativas norte-americanas Fantagraphics e Drawn & Quarterly, e os seus autores que tratavam de autobiografia e reportagem como Joe Sacco, Julie Doucet, Chester Brown,… o que para foi sem dúvida uma inspiração para autores como Pedro Brito (1975) ou Isabel Carvalho (1977), por exemplo.

Em 2002 o mercado implodiu. A Bedeteca de Lisboa perdeu protagonismo, as editoras de bd comercial abafaram as pequenas editoras, com material que nem sequer interessava ao público mas que ocupavam bastante espaço comercial nas livrarias – a distribuição de edição de bd em Portugal é feita em livrarias generalistas, há poucas lojas especializadas que para além do mais importam sobretudo comics norte-americanos e quase nunca tem edição nacional nas suas prateleiras. O mercado encontra-se moribundo seja para bd comercial seja para a “alternativa”. Ainda assim as resistências continuam com algum número de projectos editorais de tiragens pequenas: a Associação Chili Com Carne, El Pep, Opuntia Books, Nova Comix, Imprensa Canalha, MMMNNNRRRG, A Mula são algumas sobreviventes do “apocalipse 2002”.

É neste quadro, em que queremos mostrar uma bd portuguesa em sintonia com o resto mundo e em especial com a “realidade”. É uma tarefa difícil de empreender porque apesar da contemporaneidade dos temas retratados pelos autores dos anos 90, foram poucos a que se propuseram a explorar a “reportagem”, o “jornalismo”, a “crónica” ou a “autobiografia segundo a lógica Pekar”. Ainda assim, de assim podemos relatar alguns projectos como Para além dos Olivais (Bedeteca de Lisboa; 2000), um trabalho colectivo dedicado ao bairro lisboeta dos Olivais, a maior parte do material divide-se mais para a ficção do que para a “realidade”; Nós somos os Mouros (Assírio & Alvim; 2003), um projecto ibérico sobre várias questões islâmicas com a participação de autores portugueses e espanhóis sobre argumentos do espanhol Felipe Hernández Cava (1963) e o português João Paulo Cotrim (1965); Á Esquina (Campo das Letras; 2003) de João Paulo Cotrim e Pedro Burgos (1968; autor publicado em Itália no segundo número da revista Orme) que é uma colectânea que reúne tiras/crónicas sobre o dia-a-dia lisboeta publicadas no maior jornal nacional Público (entre 1998 e 1999), na tradição de Carlos Botelho; e, Cotrim com Miguel Rocha (1968) produziram o livro Salazar : Agora, na hora da sua morte (Parceria A. M. Pereira; 2006), um "best-seller" (dentro dos parâmetros do mercado da bd) e chamaram os media para um livro de bd, coisa rara, como bem sabemos.

Ainda assim, foram escolhidos outros autores, dois autores das duas principais cidades portuguesas, Lisboa e Porto, que tem trabalhado em projectos em comum, como as Feiras Laicas (um evento de edição alternativa) ou partilhado formatos editoriais pouco convencionais como são zines e pequenas editoras.

Filipe Abranches (1965), tendo o trabalho espalhado de várias formas, a sua obra de peso será História de Lisboa (Assírio & Alvim, Bedeteca de Lisboa; 2 volumes, 1998-2000; primeiro volume editado pela editora francesa Amok) que trabalhou com o recém-falecido historiador A.H. Oliveira Marques. As diferenças formais e de conteúdo deste trabalho em relação ao resto das bd’s históricas da velha-guarda ou da indústria francesa Glénat são muitas, a começar que a personagem principal que é a Cidade de Lisboa e não figuras emblemáticas. Também não temos a grandiosidade telúrica ou o charme de lenda como geralmente são retratadas os factos e figuras históricas no pior sentido da cultura institucionalizada. Daí que até tudo pareça mundano: os muçulmanos defecam de uma torre entre insultos com os cristãos na tomada da cidade. Graficamente as várias páginas desta bd são camaleónicas (como muitas experiências de Abranches foram ao longo dos anos 90) porque simulam a iconografia de cada época da cidade: páginas vermelhas para a Peste Negra, páginas a branco e azul como se azulejos do século XVIII se tratassem, as caricaturas feitas de Bordalo Pinheiro também são “sampladas” para tratar o capítulo “A cidade renovada” que se decorre por volta de 1886.

Marcos Farrajota (1973) desde 1994 que explora a “realidade” na bd. Começou com pequenos episódios, sagas de amores de verão, e documentação da “má-vida” no seu zine Mesinha de Cabeceira. Considera-se o “pior desenhador de Portugal” para fazer auto-promoção, isto porque as pessoas dizem que gostam das suas histórias mas não dos seus desenhos nitidamente naífs. Desde 1998 que começou a documentar o mundo da música ora com bd’s no tradicional formato de tiras humorísticas (embora o humor nunca acaba por ser um fim em si) fazendo crítica a concertos a discos, de gente tão diferente como Boyd Rice, Dälek, Antibalas, Brujeria, bandas locais, ou até a conferências sobre música, locais (o Museu de Instrumentos Musicais de Bruxelas), teatro (Jesus Christ Super Star) e instalações sonoras (Forty Part Motet no Museu de Arte Contemporânea de Barcelona). Algumas das tiras são feitas por encomenda para periódicos de música portugueses e filandeses, outras são feitas apenas porque o autor se divertiu num concerto.

O dionísiaco Janus (1971) tem O Macaco Tozé (MMMNNNRRRG; 2000) a sua obra principal, não só porque é o único registo oficial – o resto do trabalho tem sido espalhado em vários zines, alguns auto-editados – mas também porque nas suas 72 páginas retrata a cidade do Porto como nenhum outro autor conseguiu. O cinzentismo e aspecto bruto da cidade é mostrada não só pela estética “underground” de um autor auto-didacta cujas influências são imprevisiveis – e não, não revelarei o segredo. O retracto do Porto é completado com as desaventuras do“looser” proletário Macaco Tozé, que nada mais são as desaventuras do próprio autor. O mundo é povoado por macacos (antropomorfos das pessoas) talvez para o autor contra com alguma distância física, as suas tragédias. [as pranchas de Janus expostas acabaram por ser as que saíram no Mutate & Survive]

Em comum, com todos estes autores, Marco Mendes (1978) também ele um autor de “slices-of-life”. Se uma bd perdida no número cinco da revista Quadrado (2003) mostrava ser um virtuoso desenhador “Pop Art”, desde 2004, através dos zines com os nomes escabrosos, que o choque estético é evidente. A perícia técnica classicista a que a maior parte da bd está associada está lá é certo, no entanto, os desenhos estão inacabados, estão “ainda” a lápis, não estão passados a preto, algumas pranchas até tem cor como se o autor estivesse a ensair um resultado. Mais: os textos parecem estar cheios de erros, algumas palavras são riscadas porque o autor enganou-se a escrever. A urgência de puxar a realidade para uma folha de papel ultrapassa os formalismos e convenções de escrita e desenho da bd porque o que é necessário é colocar o Janus, outros autores, os amigos e os conhecidos de Mendes nas bd’s a falarem uma banalidade, de preferência bêbados. A boémia e a cena artística do Porto são aqui mostradas com alguma inocência mordaz.


Bibliografia internacional:
Em francês:
Le Portugal en Bulles : Un siècle et demi de bande dessinées (Bedeteca de Lisboa ; 2000), João Paulo Paiva Boléo & Carlos Bandeiras Pinheiro.
Em inglês:
Portuguese Comics in the 90’s (IPLB ; 2000), João Paulo Cotrim
Em castelhano:
A Banda Desenhada portuguesa: um universo paralelo (www.absysnet.com/recursos/comics/esp2ptgal.html; 2006), Adalberto Barreto & Marcos Farrajota
Portugal Paradójico: el panorama del cómic portués (La Guia del Cómic; Mai’03), Marcos Farrajota
Em italiano:
Sobre o Salão Lisboa 2003 e Feira Laica 2007, respectivamente em Scuola di Fumetto #13, 56 (Coniglio; 2003, 2007), Alberto Corradi

Texto publicado no catálogo do Komikazen 2007

Sem comentários:

Enviar um comentário