domingo, 15 de janeiro de 2012

Relatório sobre Fanzines e Edição Independente em Portugal 2011 (actualização)

por Marcos Farrajota

Saiu este ano um importante livro de referência sobre banda desenhada, intitulado 1001 comics you must read before you die! e coordenado pelo comissário e conferencista inglês Paul Gravett. Trata-se de uma listagem de livros ou bds que tenta resumir as melhores bds do mundo, com a ajuda de vários especialistas espalhados pelo mundo – incluindo dois portugueses: Domingos Isabelinho e Pedro Moura. É sem dúvida um trabalho hercúleo e discutível quanto à sua utilidade de criar cânones. Curiosamente ao analisar o livro deparei-me com as seguintes situações:

1) A única entrada portuguesa é o livro Diário de K. de Filipe Abranches, editado nos tempos áureos da Polvo, com o apoio do IPLB e Bedeteca de Lisboa.

2) Livros / obras como Caminhando Com Samuel de Tommi Musturi, Uma semana de Bondade de Max Ernst, Ele foi mau para ela de Milt Gross, Os meninos Kin-Der de Lyonel Feininger, Mundo Fantasma de Daniel Clowes, Palestina de Joe Sacco, Persepolis de Marjane Satrapi foram editados em Portugal por editores independentes como a MMMNNNRRRG, &etc.., Libri Impressi, Mundo Fantasma / MaisBD e Polvo.

3) Também foram editores independentes que publicaram outras obras de autores referidos 1001 Comics como Cliff Sterrett, Aleksandar Zograf, Anke Feuchtenberger, Max, Baudoin, Joakim Pirinen,... Novamente pela MMMNNNRRRG, Chili Com Carne, Libri Impressi, ou publicações como a Azul BD3 e Quadrado

Creio que fica provado a importância que estas pequenas editoras tem no mercado nacional face às “grandes” que editam produtos fáceis de investir pelos créditos já firmados e fama a rodos como Astérix, Tintin, Corto Maltese, Akira, X-Men, Batman, etc…


Definições

A edição independente é um termo que se tem utilizado para definir edições de livros ou de discos que fogem aos parâmetros, conteúdos e formatos das grandes editoras que geralmente dominam o mercado em vendas, distribuição, espaço de venda nas lojas e promoção dos seus produtos e artistas.
Há várias formas de identificar um editor independente: estrutura organizacional e laboral reduzida (uma pessoa, um casal, um colectivo), comunicação activa com os autores e o público, distribuição e promoção defeituosa, exploração de nichos de mercado, poucos apoios públicos ou institucionais, financiamento reduzido, inovação tecnológica, etc… Existe neste meio um cuidado extremoso para que as suas edições tenham o melhor aspecto, tradução ou tratamento gráfico do que as edições de grande tiragem – geralmente feitas de forma apressada e cheias de gralhas e erros de vários tipos.
São editoras que crescem conforme a longevidade e persistência dos editores, tornando-se mais tarde profissionais da área e editores de referência como é o caso da &etc…, Via Óptima, Black Sun, Edições Mortas, Mariposa Azual, Planeta Tangerina, Libri Impressi,...
Nesta definição alargada ainda assim cabem várias formas de publicação que passam por sistemas de impressão caseiros (impressora do computador), artísticos (serigrafia, gravura, xilogravura, linóleo), tecnológicos baratos (fotocópias) e relativamente mais caros (impressão digital e offset). Podemos identificar estes tipos de publicação:

Fanzine – publicação amadora feita por fãs ou militantes de alguma causa (bd, poesia, música, cinema, política) geralmente fotocopiada e agrafada com uma distribuição reduzida (em Portugal entre 50 a 500 exemplares, no Brasil dos 200 aos 2000).
Zine – evolução natural do fanzine abandonando a militância ou a idolatria pela cultura Pop, são publicações que não sendo “fãs” de algo, publicam trabalhos pessoais ou artísticos de um autor ou de um colectivo de autores.
Edição de Autor – , ou auto-edição. Edição realizada pelo autor, pode ter um aspecto profissional mas geralmente não tem um “selo de editor” como forma de garantia comercial.
Livro de Autor - edição realizada pelo autor de poucos exemplares com evidentes realizações manuais (capa, agrafamento, colagens, ex-libris, etc…) e coleccionistas (assinatura e numeração pelo autor).
Livro de Artista – edição de um livro geralmente de uma ou poucas cópias em que as páginas da edição muitas vezes são os próprios originais do livro - é o tipo de edição elitista cuja circulação passa mais pela galeria de arte do que pela livraria...
Impressão digital / P.O.D. – Impressão em fotocópia lazer que permite produzir poucos exemplares com um tratamento profissional (cozido, colado, encadernado) ou exemplares conforme a procura (print on demand). Esta tecnologia tem servido para Edição de Autor mas também para pequenas editoras ou para livros de pouca circulação de grandes editoras.
E ainda: split’zine (zine feito por dois títulos, a capa de um é a contra-capa do outro lado), prozine (termo anacrónico norte-americano para fanzines feitos por autores profissionais, mais vale usar o termo “auto-edição” ou “edição de autor”), micro-edição (edição bastante limitada, abaixo de 50 exemplares),… De fora deste “relatório” ficam as produções electrónicas: e-zines, pdfs para visualização e/ou descarga, etc…
É um mundo onde cabe de tudo: autores que vêm uma forma de promoção pessoal como uma espécie de escalada para chegar às “grandes”, autores que tem uma visão única como o seu trabalho deve ser tratado, um programa ou um plano de um editor, um registo de um movimento local/geracional/artístico, uma diversão de um autor ou de vários, uma provocação, uma necessidade de exposição pública, etc…


Onde observar este movimento?
Tirando o caso das editoras que publicam livros com Depósito Legal e ISBN, existe todo um grande movimento de publicações marginais que quase não existe em lojas nem em acervos públicos (arquivos, bibliotecas).
No primeiro caso, em parte porque os objectos não são compreendidos pelos lojistas – serão as poucas que se comportam estes objectos como algumas lojas de bd (Mundo Fantasma), galerias de arte (Dama Aflita, Galeria Ó, Estúdio JS, Re-Search,…) ou algumas de música (Matéria Prima) e de design (Fábrica Features). O facto das edições também não terem uma faceta legal (facturas, recibos, etc…) não ajuda a sua comercialização.
No segundo caso, os autores / editores não pensam na sua obra como algo válido para preservar para o futuro / memória cultural. Muitas das vezes dada à urgência de produção e edição das obras, falta esse sentido de imortalidade ou arquivo. Também pode haver uma recusa em oficializar a sua obra. Seja como for, como iremos ver mais à frente, muitas vezes estas obras serão descobertas pela “cultura oficial”.
Para encontrar a maioria destas edições é preciso frequentar alguns eventos especializados como a tradicional Feira Laica com as suas habituais duas edições por ano - uma na Bedeteca de Lisboa outra nos Maus Hábitos, Porto -, MAGA (regressou este ano!) nas Caldas da Rainha, F.E.I.A. (Montijo) e no Porto: Mercado Negro, Feira do Jeco e Feira de Publicação Independente (com duas 2 edições na Faculdade de Belas Artes do Porto). Alguns eventos de artes e de música também costumam ter mesas com este tipo de edições como o Comunicar:Design (Caldas da Rainha), Festivais Rescaldo e Matanças em Lisboa e Porto, respectivamente.
Alguns casos, as próprias entidades criam eventos próprios abertos ao público como foi o caso da Oficina do Cego que realizou uma série de workshops de livros de autor (na Faculdade de Belas Artes de Lisboa) e uma residência artística (programa Ghost nos Ateliers Real) ou da Chili Com Carne com o espaço CHILI ao QUADRADO na Work In Progress (Chiado).


Uma quantificação possível
Este ano, demos conta dos seguintes projectos de continuidade: O filme da minha vida (3 volumes – Luís Henriques, Pedro Nora, Isabel Baraona) pela Associação Ao Norte; Zona BD (2 volumes); Venham +5 (1 volume); É fartar Vilanagem! (um volume); Tertúlia BD’zine (12 volumes); BDJornal (um volume); Boletim CPBD (1 volume).

As editoras que continuaram em actividade
- Chili Com Carne com duas antologias: Boring Europa e Futuro Primitivo;
- Firma: Dark Shine, de Aleksandar Opacic;
- Kinpin Books: O pequeno deus Cego, de David Soares e Pedro Serpa;
- MMMNNNNRRRRG: Mundos em segunda mão, de Aleksandar Zograf, AcontorcionistA: Manifesto, de Grupo Empíreo, Neuro-Trip, de Neuro, Aspiração horrífica, de Aaron Shunga e Subsídios para MMMNNNRRRG #1;
- Oficina do Cego: Fábricas, Baldios, Fé e Pedras atiradas à Lama de Tiago Baptista, e a antologia Aforismo do Estádio;
- Pedrancharco: Li Moonface, de Relvas;
- Quarto de Jade: Animais Domésticos, de Maria João Worm;
- Polvo: dois livros de Lacas e Geral & Derradé (anunciados mas não os vimos ainda)
- Libri Impressi: Ele foi mau para ela, Milt Gross – e o terceiro volume da série Lance (também não o vimos).

Dos zines apareceram novos títulos, quase todos eles monográficos: O morto saiu à rua e The invisible hand de Bruno Borges; Headbanger de David Campos; Pixels Parts de Afonso Ferreira; Famous Tumours de Jaime Raposo; Metamofosis de Tiago Araújo; Stop Mundo dos U.A.T., 666 Hardware e Musclechoo, ambos de Rudolfo. e ainda duas fotonovelas da Pôe-te Fino e Mr. Krunk e o Senhor Klaxon dos Livros Espontâneos. Apercebemo-nos de vários zines e graphzines nas Caldas da Rainha (Zé Burnay, Aliböbö, Gennebra) e Porto (Panda Gordo, Hidromassagem,…) mas parece impossível de os contabilizar uma vez que não foi possível adquirir tantos títulos.
Destaque especial para dois novos projectos que pretendem continuidade: Lodaçal Comix dirigido por Rudolfo que lançou 4 números trimestralmente e o especial Hors Serie; e, Buraco feitos por autores de Lisboa e Porto que lançaram 2 números em dois meses…


No plano internacional
a) Publicações
Houve um abrandamento nas participações portuguesas em publicações estrangeiras, sendo que tivemos contas de colaborações nos seguintes países:
- Alemanha: Given (André Lemos) pela Bon Gout.
- Brasil: Pindura 2012 (André Lemos, Lucas Barbosa, Marcos Farrajota e Pepedelrey) e Prego (Marcos Farrajota e Manuel Pereira);
- Eslovénia: Stripburger (Teresa Câmara Pestana)
- Espanha: El Temerário #7 (André Lemos), Kovra #3 (Ricardo Martins), ambas pelas Ediciones Valientes;
- EUA: Hapiness (Rudolfo)
- Sérvia: Novo Doba (André Lemos e Bruno Borges), Silent Wall Army (Bruno Borges);

b) Eventos
Já em relação a participação de portugueses em eventos estrangeiros manteve-se estável como noutros anos, tendo sido registada de participação de autores, exposições ou publicações nos seguintes eventos: Festival de BD de Angoulême (França), Not Mex Not Tex com Bruno Borges e Lucas Almeida (EUA), Edita 2011 e La Noche de los libros mutantes (Espanha), Even my mum can make a book (Turquia), London Zine Symposium, Crack (Itália), Festival de BD de Helsínquia, ISV e Trauma em Mälmo (Suécia).

c) Autores
A visita de autores estrangeiros, que estão ligados à edição independente é uma prática saudável que se mantêm registada sobretudo no Festival de BD de Beja e a Feira Laica, permitindo os autores estrangeiros conhecerem autores nacionais e vice-versa. Na prática ajuda a divulgar e criar intercâmbio entre autores e editores de vários países.
A registar este ano: Andrea Bruno do colectivo Canicola (Itália), Aleksandar Zograf (Sérvia) ambos no Festival de Beja, Toff (França) na Feira do Jeco, colectivo Hetacombe (Suíça), Neuro (Roménia / Dinamarca), Alex Vieira (Brasil) e elementos dos colectivos Grut (França), Stripburger (Eslovénia) e Amalgama (Galiza) nas Feiras Laicas.


Institucionalizando
Este tipo de publicações acabam por ter um reconhecimento tardio em maior parte dos casos, veja-se por exemplo, o caso da exposição que esteve patente na Galeria ZDB entre Março e Setembro, All Power to the People. Então e Agora. A arte revolucionária de Emory Douglas e os Panteras Negras. Tratava-se da exposição da arte revolucionária de Emory Douglas e os Panteras Negras de material gráfico, ilustrações e até bds de Emory Douglas, Ministro da Cultura do Black Panther Party (desde 1967 até à dissolução do partido, em 1982). Muitos dos materiais gráficos da exposição foram resgatados graças aos arquivos pessoais do autor.
Antes, entre Janeiro e Março esteve patente uma importante exposição de banda desenhada no Centro Cultural de Belém / Colecção Museu Berardo intitulada Tinta nos nervos, e que não só mostrava 41 autores portugueses como muitos deles eram exclusivamente publicados em edições independentes. Também na exposição encontravam-se muitas destas publicações em plintos. A colecção das publicações era quase exclusivamente do seu comissário, Pedro Moura.
Estes são dois exemplos mostra como seria importante criar um organismo de procura e angariação deste tipo de edições - na verdade até há um mas só virado prá bd e ilustração!!! É a maltratada Bedeteca de Lisboa, única instituição pública portuguesa que inclui um acervo de fanzines, zines, livros de autor, micro-edição, split’zines - ainda quase todos por catalogar, acessíveis para consulta apenas. Também é verdade que a Bedeteca sendo um serviço especializado em banda desenhada detêm a maior colecção de livros de bd em Portugal. Inclui-se nesta última afirmação os livros auto-editados e de pequenas editoras – quase todos disponíveis para empréstimo. Só resta saber até quando é que esta colecção irá evoluir com os rumores que a Feira Laica não deverá continuar a sua edição de Verão neste espaço...

3 comentários:

  1. poucos gajos poderiam escrever um artigo destes em Portugal. é mesmo serviço público. obrigado.

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  2. fazia falta uma merda destas chaval!

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  3. excelente!
    e aquele velho blog que versava estes temas, um tal «my nation underground», alguém se lembra???

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