Goste-se ou não de admiti-lo, a história da banda desenhada tem sido marcada, em boa parte, pela discussão do seu estatuto artístico. Associada às tecnologias de reprodução em série e ao entretenimento das massas, tudo indica que a banda desenhada ainda não logrou libertar-se — ao contrário da fotografia e do cinema, acrescente-se — do estigma de uma certa menoridade estética. Prova disso é a retrospectiva da obra de Robert Crumb actualmente em exibição no Musée d’art moderne de la ville de Paris (no 16º Bairro), intitulada Crumb: De l’underground à la Genèse, comissariada por Sébastien Gokalp. Tamanha iniciativa poderia, em princípio, ser encarada como uma forma de contornar a ansiedade em torno deste problema, mas a verdade é que mais parece contribuir para prolongá-la. Já a primeira grande retrospectiva de Crumb, organizada em 2004 pelo Museu Ludwig, em Colónia, o manifestava abertamente através do seu título: Robert Crumb: Yeah, but Is It Art? Embora mais subtil, o título da presente exposição descreve um percurso das margens até ao centro do cânone ocidental igualmente evocativo do complexo de menoridade acima referido. Por outro lado, ainda antes de entrar na primeira sala, o visitante depara com um aviso explicando que as ilustrações e pranchas de Crumb foram essencialmente concebidas para serem impressas, pelo que muito do que aqui se mostra corresponde, na óptica do artista, a um estádio intermédio e incompleto da sua produção. Reencontramos aqui um velho imbróglio das exposições de banda desenhada (O que expor exactamente?), e que certamente tem dificultado a sua consagração pela via das artes plásticas.
Mas adiante, que o verdadeiro apreciador não se desmotiva por tão pouco. Ao longo de várias salas, é possível conhecer uma parte importante da obra de Robert Crumb, desde o início dos anos 1960 (as cartas ilustradas que ele enviou para Marty Pahls, os cartões postais humorísticos realizados para a empresa American Greetings, os desenhos relativos a uma viagem à Bulgária publicados na revista Help) até à actualidade (as mais de duzentas pranchas da sua adaptação do Livro do Génesis), sem esquecer as viagens alucinantes que marcaram o movimento hippie e underground de finais de sessenta (Zap Comix e afins) e a partida para o Sul de França, um quarto de século mais tarde (as histórias autobiográficas em conjunto com a sua mulher Aline, desenhos em toalhas de restaurante e outras curiosidades). Ao todo, mais de setecentas pranchas expostas, número que torna humanamente impossível a sua apreciação integral e que obriga o visitante a ir deixando coisas de parte, sacrificando enfim a sala dedicada ao Livro do Génesis, por demasiado fastidiosa, para consagrar mais tempo aos tablets contendo reproduções de cadernos de esboços transformados em livros (por exemplo, The Adventure of Long John Silver, de 1962). Por outro lado, a sala dedicada ao percurso musical de Crumb, nomeadamente os discos que gravou com os Cheap Suit Serenaders, fará pensar nas ligações íntimas mantidas por tantos autores de banda desenhada com a música popular.
Acerca do processo de produção de Crumb, dos seus métodos e materiais, pouco se adianta — muito provavelmente por não haver muito para dizer, embora este seja um dos tópicos mais promissores para uma exposição de banda desenhada. Estamos, em todo o caso, em presença de um ilustrador compulsivo, que passou a vida a rabiscar em blocos, tendo desenvolvido um estilo elaborado e que, ao mesmo tempo, praticamente dispensa o esboço: os primeiros traços, impressivos e nervosos, são posteriormente confirmados através de tramas densas e contornos reforçados, ou então são corrigidos pela aplicação pontual de manchas de tinta correctora. O efeito final é bem conhecido e já foi suficientemente elogiado. Mas sobrevém, igualmente, uma impressão de limitação decorrente do apego a formatos relativamente pequenos e às canetas de tinta da china Croquill. Sob este prisma, é perceptível uma desproporção entre a extensão da obra exposta e a plasticidade da mesma.
Enquanto desenhador, Crumb afigura-se capaz de retratar convincentemente qualquer motivo, mas é clara a sua predilecção pela figura humana, que ele procura dissecar, por dentro e por fora. A frontalidade com que expõe as suas obsessões, os seus fantasmas, as suas fraquezas tem suscitado as mais diversas reacções. Trata-se de caricaturar as fobias e preconceitos que pontuam a experiência de uma identidade de género hegemónica, descrevendo aquilo que o poder (masculino) faz mas não diz que faz. Aqui ou ali, o jogo torna-se ambíguo. E, no geral, previsível. Bem mais surpreendente acaba por ser o seu trabalho de designer evidenciado em diversas capas de revistas, na colecção Heroes of the Blues, nos fanzines, nas cartas e, claro, nos diversos cadernos ilustrados. Acima de tudo, Crumb foi um artesão de brochuras — correspondendo estas ao estádio finalizado da sua produção e que, neste caso, fica fora do alcance, exposto por trás das vitrinas ou confinado ao ecrã dos tablets. À saída, aproveita-se para dar uma vista de olhos no catálogo, mas a extrema fidedignidade das reproduções que nos devolvem o amarelento do papel em que foram desenhadas certas pranchas ou ilustrações mais antigas põe de parte qualquer hipótese de compra. Mais vale reconsiderar The Complete Crumb Comics, da Fantagraphics.
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