Assistimos actualmente na música portuguesa a uma praga de gafanhotos, perdão, “cantautores”! Se a primeira vaga de “cantautores” da FlorCaveira tinham piada por causa da militância (o seu cristianismo protestante Baptista), um aparelho DIY e conceitos exóticos (“panque roque do Senhor”, “panque medieval”, etc…), pouco a pouco, como aliás é habitual quando uma “cena” aumenta de importância e de exposição pública foi-se amansando como um cachorrinho caseiro.
Percebe-se que a FlorCaveira tenham recuperado figuras perdidas como Jorge Cruz ou apostado no novato B Fachada e no “cantaurorismo” como forma de trazer a língua portuguesa de volta ao consumo Pop depois do vazio pseudo-Aldeia Global dos anos 90 – é irónico que quem enche Coliseus à fartazana sejam os Ornatos Violeta, a única banda Pop que cantava em português nos anos 90 e não os que se quiserem internacionalizar-se à força como Silence 4 ou Blind Zero, que isto sirva de lição a quem quiser!
Passada a moda e mediatismo desta editora / colectivo, os seus restos mortais são um legado cristalizado de arrestas limpas para consumo fácil como é o caso de José Camilo na sua Viagem ao subúrbio (auto-edição; 2012) onde encontramos uma moleza, fácil de comparar a casos históricos como UHF ou Lobo Meigo, Pop / Rock armado em chico-esperto que tenta parecer inteligente por causa de alguns “breaks”. Também é o caso de As Oportunidades Perdidas de Bruno Morgado (FlorCaveira; 2012) que soa logo no início ao Vitor Espadinha, só lhe falta a tesão sem ser para procriar. Ou queria ser o Leonard Cohen? Seja como for a coisa avança para outros cenários como os de Lee Hazelwood, B Fachada e o Festival da Eurovisão...
A excepção a este rame-rame é Tiago Guillul que instiga, grava e edita como um louco, sendo capaz de ir ao fundo da questão, sem se deixar cair nas fórmulas comerciais fáceis, roubando samplers ao Punk, ao Metal e à World Music para criar os seus discursos com fundo original e independente – coisa que rareia na música portuguesa em particular e na criação em geral. Guillul é um pregador, ora um pregador prega! Tem de estar atento ao mundo e não se fechar em copas, não pode parar com figuras de estilo e discursos vazios. Não é preciso cursos de semi-óptica para se perceber que Guillul fala dos (nossos) tempos nos seus relatos, independentemente da mensagem cristã, é dos poucos músicos que faz um retracto da sociedade portuguesa no século XXI. Outro ponto a favor…
Para além da sua produção que já lá iremos, também é capaz de chatear malta para fazer compilações como Ruptura Explosiva (Amor Fúria + FlorCaveira + Um Disco Pronto e Sincero; 2011) que é mais barata e bem melhor que qualquer colectânea dos Novos Talentos da FNAC (1). Há várias razões para afirmar isto apesar de nenhuma destas malhas merecer estrelato, uma delas e a principal é que se trata de um trabalho de “comissário”, ou seja, Guillul escolheu bandas para dedicarem o seu trabalho a um tema – um tema xunga, é certo, que é a comemoração dos 20 anos do filme de acção (e surf) Ruptura Explosiva com Keanu Reaves e Patrick Swayze. Graças a gesto simples de “curadoria” dá coerência e tom ao disco, sem este deixe de ser ecléctico q.b. Fala-se num texto do CD em Rock mas disto há pouco – o único momento digno de tal é o primitivismo dos Borboletas Borbulhas – porque de resto há sobretudo muito “cantaurorismo” e Electrónica manhosa – entre elas um tema de Te Voy A Matar que apareceu na banda sonora do Futuro Primitivo (Chili Com Carne; 2011). O disco sabe a mar e verão (inevitavelmente) sendo que hajam várias abordagens de trabalho neste “tributo do filme”, desde de se cantar do genérico do filme (Pega-Monstro com Rabu Mastah – não devia estar este tema no fim do disco?) a “samplar” pedaços do filme para incluir na música (Aquaparque com Nudista Prateado) ou usar o material sonoro do filme para fazer a música toda – como fez Ben Lacrau que sampla os socos, tiros e afins para fazer deles os bombos, tarolas e tudo o mais da música. Pena ter recebido o disco no Outono de 2012 e não ter curtido isto na “silly season” de 2011, teria sido bem mais fixe…
Entretanto, a tempo e a horas aparece o sexto disco de Guillul, intitulado Amamos Duval (FlorCaveira + Um Disco Pronto e Sincero; 2012), um álbum duplo, anacronismo marado uma vez que os CDs conseguem ter 80m de música e estes dois CDs não chegam a tal. Mas Guillul é um “artista bruto” com educação e programa filosófico próprio que apesar de não ser um caso clínico (como Daniel Johnson e afins), não deixa de ser interessante fazer um paralelo com estes “doidos visionários”. Guillul, como esses outros autores, não se desvia da sua senda, daí que mantem as características que nos habitou no passado, como as canções com contos autobiográficos, alguns com intervenções directas das suas crias; aparece sempre uma crítica social alinhada à sua postura retrógrada que tanto soa a brilhante como o tema Estás casado com o Estado em que a letra é uma explícita caricatura do artista rebelde - Espera aí que estás casado com o Estado / mas queres fazer figura de solteirão -, ou pode ser completamente irresponsável como Faz Filhos, em que Guillul com orgulho de Velho Testamento exibe os seus 4 filhos na contra-capa do disco e neste tema em especial apela à reprodução da nossa horrível raça. Claro que há um humor em toda esta criação mesmo que seja um humor Baptista que não se possa perceber na totalidade. Parece um misto de Fungagá da bicharada, teeny-boopy deslocado, folktrónica e vanguarda indesejada. Tal como os “artistas brutos”, Guillul é genial, nas suas produções onde tanto entra Ratos de Porão como Stealing Orchestra, Justin Bieber ou Chuva na Areia… O álbum duplo só se justifica por um excesso de produção como é típico dos “brutos”, espíritos inquietos e criativos que Guillul cada vez mais se revela como tal.
A vantagem de trabalhar sozinho é que tudo o que sai é puro! E topa-se que um ano antes, Tiago ao encarnar com uma banda, Os Lacraus que Encaram o Lobo (FlorCaveira + EMI; 2011) acaba por ter um compromisso que implica monotonia musical. Síntese das ideias desenvolvidas entre ele e acólitos, feita das orações gravadas em dezenas de CD-Rs de edição limitada, aparece com manias de grandeza - por gravarem para uma editora profissional? Sei que acabei de escrever um cliché – quando se grava para uma multinacional és um vendido - mas é quase impossível não fugir ao cliché quando se ouve o tom épico de catedral à Arcade Fire e se rouba à descarada a face limpa dos Clash. Já não é a primeira vez que aviso desta perigosa iconoclastia (ou “cultural jamming”) destes cristãos, que estão a subverter a cultura popular não para nos iluminar mas para nos cegar com as promessas divinas do pós-morte e do pós-Apocalipse. Resta-nos relembrar um grego que disse que “os mortos valem menos que merda” (2) para não nos preocuparmos com as ambições dos produtos da FlorCaveira. Não deixa de ser delicioso a sua crítica social reaccionária – infelizmente não há muitas bandas a destilarem algum ódio aos maricas do Bairro, por exemplo. Ainda assim é um disco limpo e arranjado que se torna “flat” como a capa ilustrada de André Andrade.
Pelo menos todas as capas destes discos são ilustradas! E é assim que deve ser!
(1) não admira que esta cadeia de lojas esteja para fechar…
(2) citado algures em “Contra os Cristãos” (Estampa, 1991) de Celso
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