segunda-feira, 22 de julho de 2013

Xavier Löwenthal, Ilan Manouach : "Metakatz" (5éme Couche; 2013)


A 15 de Março de 2012, o livro Katz foi destruído (ver vídeo aqui) para espanto de muitos que pensavam que o Bücherverbrennung (queima de livros no regime Nazi) era coisa do passado. O livro não foi queimado (já lá vamos) mas triturado por uma empresa belga especializada em destruição de documentos.

O livro foi considerado uma contrafacção de Maus, obra de Art Spiegelman que até foi publicada em Portugal, sabe-se lá como, em dois volumes há muito esgotados e nunca reeditados. Para quem não sabe o que é o Maus: Obra baseada na biografia do pai do autor, que sobreviveu ao inferno dos campos de concentração Nazis. Tem como contexto o genocídio dos Judeus levado a cabo pelos Nazis, durante a 2.ª Guerra Mundial. Art Spiegelman, um dos principais nomes da BD “underground” norte-americana e, durante anos editor de capas da “The New Yorker”, escolheu a BD para contar a tragédia vivida pelos seus pais e aproveita o cariz biográfico da obra para abordar também alguns aspectos do seu relacionamento com os pais. Trata-se de uma das mais importantes obras da história da BD de sempre.
Em Maus, os Judeus são retratados por ratos e os nazis por gatos, para representar um "jogo do gato e do rato" (o jogo biológico e o da tradição "cartoonesca") e como analogia à propaganda antisemita que Hitler criou. Como refere Nicolas Verstappen (p. 141) Spiegelman consegue uma poderosa iconografia com a personificação dos ratos, as cabeças são meros triângulos (a lembrar os símbolos dos campos de concentração?) sem boca - como uma vítima que não pode falar. A discussão desta opção de Art já vêm de longe, Harvey Pekar em 1986, quando saiu o primeiro volume de Maus já o tinha referido na revista The Comics Journal, que as representações teriomórficas prolongavam a cultura de preconceito étnico. Questão que Katz, produzido pelo grego Ilan Manouach, iria levantar outra vez ao substituir todas as cabeças dos vários animais por cabeças de gato.
Katz pretendia reler Maus perguntando se o segundo não prolonga a cultura da vitimização - ainda por cima criada pelos próprios oprimidos - mas acabou por perguntar muito mais do que isso ao ser destruído. Daí que se encontra no livro a primeira parte do meu texto Comix Remix (traduzido em francês pela Joana Baguenier) e vários outros intervenientes, alguns dos meios académicos (estudiosos sobre as questões autorais ou sobre BD como o "nosso" Pedro Moura), autores de BD (Fabrice Neaud e Lewis Trondheim, os mais conhecidos), em que quase todos colocam em dúvida o velho regime do "copyright", "direito de autor" e "propriedade intelectual" que há muito se tornou uma coisa corrupta, absurda e bloqueadora do avanço das Artes, cultura e ciência (registar sementes, anyone?).

Quase ao mesmo tempo, que saiu o Meta Maus (livro sobre Maus) saí este Meta Katz, tal como Katz tinha saído no Festival de BD de Angoulême 2012, ano em que Spiegelman foi Presidente do evento. Soa a assédio artístico mas visto que Katz teve o destino que teve, só assim é que se pode manter uma chama acesa (ops, péssima escolha de palavras!!!) sobre o que Katz trouxe à praça pública - incluindo o que acontece com os papeis destruídos, vendidos à China e levados em contentores cheios de bicharada.

Mas afinal Katz era mesmo uma contrafacção de Maus? A editora belga 5éme Couche, responsável pela edição, teve de aceitar esta acusação feita pela Flammarion (detentora dos direitos de Maus em francês) porque sendo uma editora independente não teria recursos financeiros para continuar a defender Katz como uma obra de direito artístico próprio. Assim da tiragem de 800 exemplares, cerca de 600 foram legalmente triturados - e mais tarde queimados pelos membros da 5éme Couche como forma de protesto público e artístico, num acto à la Cage falhado e registado no vinil 7" que acompanha o Metakatz. Foi ainda pedido que o ficheiro digital fosse apagado o que só prova que a Flammarion é uma editora de velhinhos que não sabem que os ficheiros digitais são das coisas mais fáceis de se "reproduzir por aí"... enfim!

Quem se interessa por estas coisas de direitos de autor deve conhecer a história dos U2 versus os Negativland nos anos 90 e descobre a ironia inacreditável, ou deveria dizer apenas, de como a história se repete... Quando os Negativland foram processados pela Island, editora dos U2, estes últimos que são considerados como os "defensores do pobrezinhos" (relembro nas campanhas altruístas do badamerdas do Bono Vox!) nada fizeram para impedir que os pequenos Negativland fossem esmagados com processos judiciais... Não poderiam ter negociado com a Island para terem calma com os "engraçadinhos"? Vinte e dois anos depois, Art Spiegelman esteve caladinho como um rato (sim, um rato!) quando a grande Flammarion esmagou os pequenos 5éme Couche! Só por isto, Spiegelman merece ser assediado e apontado o dedo, desta vez não por neo-nazis ou revisionistas e outros paranóicos das conspirações judaicas (já agora, quer Xavier quer Ilan têm ascendência judaica para quem os tentou colocar de acusar de anti-semitas) mas pela sua própria classe profissional: autores de BD, ilustradores, artistas, músicos, etc... que sempre que fizerem uma obra que pegue em excertos doutra terão velhos dinossauros à coca para lhes espancar.

O mais estranho, é que Spiegelman já "roubou" muitos autores no passado e ainda recentemente no álbum In The Shadows of No Towers, como bem observa Pierre-Yes Lador, que lhe faz um percurso de "citações" desde o início de carreira com as ilustrações da Topps Bubble Gum, passando pelo álbum Breakdowns até às antologias Raw e Little Lit que editou nos anos 80 e 90. Mas isso já pouco importa para quem já passou para o outro lado da barricada.

Se Spiegelman é uma figura importante na BD, não o é como autor seminal de certeza (a autobiografia tem Pekar como figura paternal) mas por ser alguém que deu mais voz pública à BD de autor / à BD autobiográfica / à BD sobre memória e a de reportagem quando Maus ganhou o prémio Pulitzer em 1992. Ou dita de outra forma, foi a única vez que uma BD ganhou este importante prémio mediático. Depois de Katz sofre um abalo na sua imagem quanto a mim porque não podendo eu fazer uma leitura proposta pelo livro destruído passei a ter uma outra leitura que passa pela perspectiva histórica da própria BD em que Maus se verga. Se antes podíamos falar de antes de Maus e depois de Maus na realidade Maus já não é nada! Maus ao assumir-se como uma BD que usa o imaginário antigo e tradicional da cultura comercial da BD, ou seja, gatinhos e ratinhos (e já agora, de porquinhos e de cãezinhos) passa a pertencer a esse mundo ignóbil que é a História da BD, que amontoa os seus momentos "históricos" exclusivamente em aspectos mercantis, índices de popularidade e lutas jurídicas, e não por apreciações culturais ou discussões artísticas. Se Maus é tão importante porque é que ela foi buscar as suas ideias gráficas à BD do "antigo regime"?

É difícil ter respeito pela História da BD, mesmo que se possa ficar deslumbrado pelas visões fantásticas de Winsor McCay ou George Herriman, pelas suas técnicas ou pela sua perícia artesanal de trabalho gráfico mas a verdade é que a BD sempre foi um produto "todo público" e que se colou ao "infanto-juvenil" muito facilmente na dobra do século XX, tendo que esperar os libertários anos 60 para produzir finalmente obras "adultas". Face a isto, há realmente muito pouco para admirar ao nível de conteúdo literário - e mesmo a questão visual ou plástica também é bastante discutível - em 100 anos de História oficial celebrada pela treta dos 100 anos feitos em 1996 ao adoptarem o "Yellow Kid" como ponto de comemoração. Maus vêm desta tradição das figurações antropomórficas e teriomóficas para crianças e jovens, rebaixando-se perante o passado do médium, coisa que não havemos de encontrar em Pekar, ou em Buzzelli ou Breccia que se estavam bem nas tintas prá "bonecada". Talvez Ilan e Xavier não se aperceberam disso quando davam entrevistas, na altura de Katz, em que respondiam anonimamente usando nomes de gatos famosos da BD como Grominet (Sylvester), Garfield, Fritz the cat, Tom  (do Tom & Jerry) e Waldo... Uma brincadeira iconoclasta que na realidade levanta toda esta questão da História da BD feita exclusivamente de eventos da BD inDÚSTrial.

Em 2086 talvez haja alguém que coloque Maus como um ponto de referência para História da BD mas estarão enganados, agora podemos ver que foi uma histeria mediática e popular, que passado quase 30 anos adoptou ficar ao lado dos Vencedores da História - que são aqueles que a escrevem, como bem sabemos. Art está ao lado das corporações como a DC Comics, Disney ou da Marvel que humilharam centenas de criadores durante um século inteiro. Se depois dos Sex Pistols, como refere Greil Marcus, deixou de fazer sentido escrever mais canções Pop de Amor entre rapaz e rapariga, depois de Katz é impossível ler uma BD que meta animalitos a pinarem ou a snifarem Zyklon B, sem deixar de sentir que estamos a ser enganados...

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