terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Cartas italo-suomis

Já tenho dito que têm sido nas periferias da Europa que se encontra a BD mais excitante neste milénio. Agora que há um excesso de ofertas de "graphic novels" nos EUA e França, ou seja, o fomato livro finalmente se adaptou à BD, em contrapartida há menos propostas de ruptura como aconteceu nos anos 90 com os catálogos da Fantagraphics, Drawn & Quarterly ou L'Association. É natural até que estas editoras que tanto lutaram e ainda lutam para que a BD não fique entregue à bicharada "bedófila", com a idade, apresentem autores ou obras menos radicais quando eram mais "novas".

Na última década, onde vi os livros mais belos e com o conteúdo mais interessante foi da Finlândia e da Itália. Do Norte vem muita BD experiemntal e de cores berrantes, do Sul, a preto e branco belíssimos a contarem histórias pujantes. Alguns dos projectos destes países sofreram também metamorfoses mas pelos vistos ainda têm muitas cartas para dar.




Começo pela Huuda Huuda, editora que agora é dirigida apenas pelo Tommi Musturi. Talvez ele tenha aproveitado restos de papel de outros livros para fazer estes dois de Aapo Rapi, que em inglês são intitulados de Log Cabin Man e Future Man. São dois tratados humorísticos a explicar como é ser artista na Finlândia no presente e bem... no futuro, com muito álcool, cigarros e o palavrão "Perkele!" na boca. Lembra o "nosso" José Smith por expor o ridículo do homem contemporâneo.




Advanced Offices & Humans de Roope Eronen mantêm a lógica do livro anterior, ou seja a inversão dos papeis no jogo de personagem (RPG) Dungeons & Dragons, invés de serem pessoas a jogarem um mundo de fantasia, são dragões que encarnam as personagens dos humanos em escritórios. Nesta "aventura" os humanos preparam uma proposta de aquisição de uma empresa alimentar com as situações típicas de rivalidade entre colegas ou andarem a jogar no computador às escondidas. Anexado ao livro está uma folha de características da personagem que parece um verdadeiro CV. Divertido como o livro anterior só é pena que as legendas em inglês tenham sido impressas numa cor de pouca leitura. Se o Tommi não tivesse sozinho nesta empresa, a sua cabeça iria rolar...

E o que dizer de um romance gráfico como Ukkometsola de Jarno Latva-Nikkola? Uma verdadeira provocação à cultura finlandesa? Ou é um disfarce de bons costumes? A história de três irmãos a quererem explorar uma quinta que produz leite de porco (!) poderia não aguentar mais do três páginas de BD mas o sacana do Jarno faz quase 200 de peripécias e dramas humanos que cativam qualquer um, talvez porque o desespero destes "agrónomos" finlandeses não deve ser tão diferente dos portugueses face ao mundo cada vez mais burocratizado, globalizado e mediático. Seja como for, é uma boa história de "white trash" que nos aquece sempre um pouco, delirante q.b. sem cair em humor fácil - apesar do tema ser logo absurdo. Jarno é uma caixa de surpresas como prova com este seu terceiro livro. Um autor que merece toda a atenção!



Da Canicola aparecem em gloriosos grandes formatos A3, os livros Roghi da italiana Anna Deflorian e Cani Selvaggi da finlandesa Amanda Vähämäki, que aliás foi uma das fundadoras da Canicola quando era revista de colectivo. Os dois livros mantêm o espírito do início do projecto desses tempos: narrações em ares insuportáveis de calor pós-apocalíptico, as quebras e aproximações das relações humanas, a inocência dos que nasceram depois do "grande trauma" e metáforas prás "coisinhas da vida". Enquanto que os desenhos de Amanda vivem todo o esplendor neste formato e além de que ela está cada vez mais livre e perfecionista com o uso de grafite, já Deflorian admito alguma relutância em gostar das suas matrafonas hipsters e o ar de fake vintage da coisa a lembrar algumas coisas da dupla Gigi i Gigi... Não deixa de impressionar ainda assim.

Por fim, e voltando para o Norte mas prá Estónia e num formato pequeno (o A6), na mesma colecção onde saiu o primeiro livro de Amanda Baeza encontramos a estreia na BD pela poetisa Tiina Lehikoinen com The Pernicious Kiss. O que se passa na Finlândia? Perceberam que a boa BD passa pela criação poética? Relembro Jyrki Heikinnen que também pela poesia antes de fazer BD... Tal como ele, Tiina não sucube à tentação da palavra substituir o desenho na BD mesmo quando estas são fortes e nos invoquem imagens, pois ela aprendeu a fazer desenhos que têm presença per se. De resto, estamos um pequeno ensaio surrealista caso se alguém se enamore por um namorado com uma cabeça de cavalo - o que se passa com os escritores que adoram contos com cavalos? Espera lá... o que se passa com as autoras de BD e cavalos!?

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