Contornando a Baía de Ana Chaves pela Avenida Marginal em direcção
ao Forte de São Sebastião. Deixando para trás as ruas mais nervosas da cidade, entra-se numa zona de serviços, direcções-gerais, ministérios e quartéis que só pode
surgir como inóspita a quem tenta abrir caminho debaixo de intenso calor. O céu
está bem carregado, mas nenhum jorro de chuva se abate sobre o rebordo litoral
da ilha de São Tomé. Algures por aqui, à direita, a CACAU — ou Casa das
Artes, Criação, Ambiente, Utopias. Tem que se abandonar o curso da avenida e
entrar por um recinto de terra batida nas traseiras do qual se ergue o pavilhão
que alberga a sétima Bienal Internacional de São Tomé e Príncipe (BIS),
organizada pelo chefe de cozinha, jornalista, artista plástico, patrão de roça
e conselheiro de estado João Carlos Silva, personalidade emblemática do
arquipélago.
Pela CACAU têm passado, desde Novembro último, diversas obras de
pintura, fotografia, desenho, escultura, serigrafia e vídeo, exibidas segundo
um esquema rotativo que deixa algumas delas em fila de espera nas zonas
limítrofes do espaço de exposição. Na segunda semana de Fevereiro de 2014, a
amostra incluía, para além de duas serigrafias de Warhol retratando Muhammad
Ali, uma porção de trabalhos de artistas angolanos, sul-africanos, nigerianos,
são-tomenses ou portugueses. Por exemplo, a divertida sequência fotográfica Diary of a Victorian Dandy (1998), do
britânico-nigeriano Yinka Shonibare, encenação de um dia na vida de um suposto
diletante personificado pelo próprio artista, onde o tom da pele é o pormenor
que destoa face às demais figuras, adereços e cenários; e os espectros do
Tchiloli — espécie de teatro de rua que reconstitui a tragédia de Carlos Magno,
em pleno mato equatorial, diante de uma audiência de vivos e mortos — pairando
sobre a obra dos criadores são-tomenses, em particular René Tavares.
René Tavares, Two Lives, Tchiloli (2013) |
René Tavares, Inspired by Tchiloli History (2013) |
Mas a CACAU é também lugar de sons e sabores, servindo refeições a
preço módico e oferecendo concertos a partir do meio da semana. Nas noites de
quarta-feira, o público tem a oportunidade de mostrar os seus dons, contando
com o suporte instrumental da banda residente. Alguns dos que se atrevem a
subir ao palco possuem já algum traquejo, como certo rapaz negro com o cabelo
em crista e grandes óculos de armação verde e alça prateada. Quem o conhece
di-lo proveniente dos arredores mais desfavorecidos da capital, mas o que salta
à vista é o facto de ele ter chegado à CACAU acompanhado de duas mulheres brancas,
de aparência francesa ou alemã, cada qual com mais de sessenta anos, e que assistem
da mesa à sua actuação. Em redor circula a hipótese de se tratar de um casal
lésbico em missão de turismo sexual (ou bissexual), tendo em conta as trocas de
carícias verificadas momentos antes entre o jovem são-tomense e uma das
mulheres. O rapaz, esse, parece não ter nada a esconder. Interpreta um tema de kuduro cujo refrão é taxativo e convida
a pôr de parte apreciações demasiado moralistas da comercialização do sexo, bem
como divisões estanques entre predadores e presas sobrepostas às inevitáveis assimetrias
económicas. «Eu quero casar / Eu vou casar contigo», diz o puto, e pede o apoio
da assistência enquanto olha na direcção da sua eleita. O resto da letra contém
alusões explícitas à necessidade de comprar roupa e sapatos. O desígnio é,
portanto, claro e condiz com o que, em certas paragens turísticas igualmente marcadas
pela pobreza, vem sendo praticado como forma de amealhar algum pecúlio e viajar
para um mundo de consumo sofisticado que permanece, por ora, mais distante. Para
quem faz parte desse mundo e, saciado de tecnocracia europeia, se deslumbra com
os tesouros naturais de São Tomé e Príncipe, o programa afigurar-se-á
desesperado e aviltante. Só que esta visão acaba por retirar ao outro, já de si
depauperado, a liberdade de escolher os meios para atingir os seus fins. Na
CACAU, o palco é aberto. O próximo artista dá pelo nome de “Bill Clinton”: é
mais um jovem ilhéu relativamente produzido, cabelo pintado de amarelo e calças
vermelhas, a quem faltará, por ora, o par ideal. Mas ei-lo lançando a rede, com
uma versão lenta de «O bicho», de Iran Costa…
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