O 'barraco' de Valdo, nas margens do rio... |
[De um caderno de apontamentos]
1 de Outubro
Planeando uma possível visita à Amazónia, consultando guias de
viagem em formato pdf, sítios na Internet… Viagem de barco, hotel na selva ou
expedição privada? Nas imediações de Manaus ou mais longe? Armar em explorador
intrépido ou aceitar a impossibilidade de escapar ao pacote turístico, à
convivência forçada com companheiros de ocasião imersos nas suas situdes e vendo
o regresso como coisa segura? Não adianta iludir a questão fazendo notar que
tudo é, como aliás sempre foi, mediado. O que importa perceber é se existe
alguma possibilidade de sair dos contornos previamente definidos de uma viagem
e encontrar uma qualquer dissonância, uma abertura. Nas cidades pode-se pelo
menos escolher os percursos. No meio da floresta ficamos nas mãos de quem nos
guia e os limites da experiência tornam-se mais claros. Que forma assumirá
então o imprevisto? Um dejecto de plástico arrastado pelo rio? Uma inundação súbita?
[De um e-mail]
24 de Novembro
Li o teu ensaio
sobre o contributo da dupla Saidenberg-Canini para a personagem Zé Carioca.
Edificante, como sempre. Acerca de Renato Canini, há um detalhe que me parece
revelador. Diz-se que ele nunca pôs o pé no Rio de Janeiro, tendo vivido
sobretudo no sul do Brasil. Ora, boa parte do encanto gráfico do Zé Carioca desenhado
por Canini advém precisamente do retrato sintético mas bastante sensível que
ele nos dá do Rio de Janeiro, com os seus morros toucados de favelas, a sua colorida
e engenhosa malandragem, etc. Neste sentido, Canini insere-se numa tradição de
autores de banda desenhada que ― num movimento de sentido inverso ao do registo
autobiográfico ― levaram os seus heróis para mares, desertos e selvas que eles
próprios nunca conheceram pessoalmente e que todavia conseguiram representar de
modo eficaz, jogando com os ícones disponíveis.
A
propósito, parto em breve para uma curta expedição pela Amazónia que, no meu
imaginário, também terá algo a ver com Tintim, Spirou e Fantásio, Corto
Maltese, Bernard Prince ou o Monstro do Pântano...
[De um postal]
30 de Novembro
Cheguei hoje a Manaus. Não sei se por ser Domingo ou por causa do
calor imundo, mas as ruas do centro estavam desertas à hora de almoço. Fechei-me
no hotel para recuperar algum sono perdido. Pelo fim da tarde, fui dar uma
volta pelo Largo de São Sebastião e assisti, no Teatro Amazonas, a um concerto
de Bach. Depois de amanhã embrenho-me na selva com um guia caboclo. O programa: navegar de canoa ao longo de um rio, parando de quando em quando para
umas caminhadas pela mata, onde também acamparemos. (…)
[De um diário de viagem]
3 de Dezembro
Primeiras impressões da floresta: uma verticalidade
impressionante, marcada pelas linhas aprumadas dos troncos das árvores, que
ascendem duas dezenas de metros e só depois, numa espécie de segundo patamar da
mata, se desdobram em ramos cheios de folhas e de onde pendem, por sua vez, dezenas
de cipós. O padrão vertical é todavia complementado, mais próximo do solo, por
uma quantidade de árvores tombadas pelo vento e que se atravessam
incessantemente no nosso caminho. Aqui e ali, são visíveis os vestígios de
passagens anteriores do meu guia: restos de uma grelha de madeira, uma corda
estendida entre duas árvores para pendurar um toldo impermeável, algumas
garrafas vazias…
Grelha de madeira |
4 de Dezembro
Seguimos ao sabor da corrente, focando as margens com a lanterna
como fazem os caçadores da região, procurando interceptar o brilho dos olhos
dos animais noturnos (o grupo com o qual nos cruzámos ao fim da tarde disse ter
visto uma onça a atravessar o rio…). Nada. Abstraio-me, por momentos, na contemplação
de Orionte, cujo belo desenho domina o corredor de céu por cima das nossas
cabeças…
4 de Dezembro: acampamento na mata... |
5 de Dezembro
Diz-me o guia que foi ele quem baptizou os vários lugares por onde
passámos (antes não viveria aqui ninguém). Assim, as duas grutas do primeiro
dia receberam os nomes, respectivamente, de Gruta
do Morcego e Gruta dos Taititús,
em virtude dos animais que as frequentavam. A cascata do segundo dia foi
chamada de Duas Cachoeiras, por ser
precedida de uma pequena queda de água. Uma outra cascata foi chamada de Lua Branca, porque o seu caudal lembra a
forma de um quarto crescente quando o igarapé corre na máxima força. Uma língua
de areia onde descansámos ficou conhecida como Praia da Ilha, dado haver uma ilha em frente. E o caminho proposto
para amanhã é a Trilha Central, por
levar ao «centro da mata, longe da casa, longe do rio».
6 de Dezembro
O tempo decorrido desde a última utilização deste percurso foi
suficiente para que muitas árvores tombassem e outras começassem a crescer,
apagando o leve sulco da trilha. Valdo partiu há um bom bocado, de facão em
punho, tentando descobrir a continuação do caminho. Os cães foram com ele. Sinto-me
cansado e algo nervoso perante a ausência prolongada do meu guia, que me deixou
especado, em plena floresta, munido de um bloco de desenho Canson e marcadores Uni Pin.
E se Valdo não conseguir regressar para o sítio onde me encontro? A mata é tão cerrada…
Por enquanto, tudo parece tr