quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Amazónia: a selva possível...



O 'barraco' de Valdo, nas margens do rio...

[De um caderno de apontamentos]
1 de Outubro
Planeando uma possível visita à Amazónia, consultando guias de viagem em formato pdf, sítios na Internet… Viagem de barco, hotel na selva ou expedição privada? Nas imediações de Manaus ou mais longe? Armar em explorador intrépido ou aceitar a impossibilidade de escapar ao pacote turístico, à convivência forçada com companheiros de ocasião imersos nas suas situdes e vendo o regresso como coisa segura? Não adianta iludir a questão fazendo notar que tudo é, como aliás sempre foi, mediado. O que importa perceber é se existe alguma possibilidade de sair dos contornos previamente definidos de uma viagem e encontrar uma qualquer dissonância, uma abertura. Nas cidades pode-se pelo menos escolher os percursos. No meio da floresta ficamos nas mãos de quem nos guia e os limites da experiência tornam-se mais claros. Que forma assumirá então o imprevisto? Um dejecto de plástico arrastado pelo rio? Uma inundação súbita?

[De um e-mail]
24 de Novembro
Li o teu ensaio sobre o contributo da dupla Saidenberg-Canini para a personagem Zé Carioca. Edificante, como sempre. Acerca de Renato Canini, há um detalhe que me parece revelador. Diz-se que ele nunca pôs o pé no Rio de Janeiro, tendo vivido sobretudo no sul do Brasil. Ora, boa parte do encanto gráfico do Zé Carioca desenhado por Canini advém precisamente do retrato sintético mas bastante sensível que ele nos dá do Rio de Janeiro, com os seus morros toucados de favelas, a sua colorida e engenhosa malandragem, etc. Neste sentido, Canini insere-se numa tradição de autores de banda desenhada que ― num movimento de sentido inverso ao do registo autobiográfico ― levaram os seus heróis para mares, desertos e selvas que eles próprios nunca conheceram pessoalmente e que todavia conseguiram representar de modo eficaz, jogando com os ícones disponíveis. 
A propósito, parto em breve para uma curta expedição pela Amazónia que, no meu imaginário, também terá algo a ver com Tintim, Spirou e Fantásio, Corto Maltese, Bernard Prince ou o Monstro do Pântano...

[De um postal]
30 de Novembro
Cheguei hoje a Manaus. Não sei se por ser Domingo ou por causa do calor imundo, mas as ruas do centro estavam desertas à hora de almoço. Fechei-me no hotel para recuperar algum sono perdido. Pelo fim da tarde, fui dar uma volta pelo Largo de São Sebastião e assisti, no Teatro Amazonas, a um concerto de Bach. Depois de amanhã embrenho-me na selva com um guia caboclo. O programa: navegar de canoa ao longo de um rio, parando de quando em quando para umas caminhadas pela mata, onde também acamparemos. (…)

[De um diário de viagem]
3 de Dezembro
Primeiras impressões da floresta: uma verticalidade impressionante, marcada pelas linhas aprumadas dos troncos das árvores, que ascendem duas dezenas de metros e só depois, numa espécie de segundo patamar da mata, se desdobram em ramos cheios de folhas e de onde pendem, por sua vez, dezenas de cipós. O padrão vertical é todavia complementado, mais próximo do solo, por uma quantidade de árvores tombadas pelo vento e que se atravessam incessantemente no nosso caminho. Aqui e ali, são visíveis os vestígios de passagens anteriores do meu guia: restos de uma grelha de madeira, uma corda estendida entre duas árvores para pendurar um toldo impermeável, algumas garrafas vazias…

Grelha de madeira
4 de Dezembro
Seguimos ao sabor da corrente, focando as margens com a lanterna como fazem os caçadores da região, procurando interceptar o brilho dos olhos dos animais noturnos (o grupo com o qual nos cruzámos ao fim da tarde disse ter visto uma onça a atravessar o rio…). Nada. Abstraio-me, por momentos, na contemplação de Orionte, cujo belo desenho domina o corredor de céu por cima das nossas cabeças…

4 de Dezembro: acampamento na mata...
 5 de Dezembro
Diz-me o guia que foi ele quem baptizou os vários lugares por onde passámos (antes não viveria aqui ninguém). Assim, as duas grutas do primeiro dia receberam os nomes, respectivamente, de Gruta do Morcego e Gruta dos Taititús, em virtude dos animais que as frequentavam. A cascata do segundo dia foi chamada de Duas Cachoeiras, por ser precedida de uma pequena queda de água. Uma outra cascata foi chamada de Lua Branca, porque o seu caudal lembra a forma de um quarto crescente quando o igarapé corre na máxima força. Uma língua de areia onde descansámos ficou conhecida como Praia da Ilha, dado haver uma ilha em frente. E o caminho proposto para amanhã é a Trilha Central, por levar ao «centro da mata, longe da casa, longe do rio».

6 de Dezembro
O tempo decorrido desde a última utilização deste percurso foi suficiente para que muitas árvores tombassem e outras começassem a crescer, apagando o leve sulco da trilha. Valdo partiu há um bom bocado, de facão em punho, tentando descobrir a continuação do caminho. Os cães foram com ele. Sinto-me cansado e algo nervoso perante a ausência prolongada do meu guia, que me deixou especado, em plena floresta, munido de um bloco de desenho Canson e marcadores Uni Pin. E se Valdo não conseguir regressar para o sítio onde me encontro? A mata é tão cerrada… Por enquanto, tudo parece tr



terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Códices franceses


Em 2014 ainda é possível misturar e confundir conceitos - e se calhar mais em 2014 que noutra altura. Turkey Comix é uma antologia de BD de França editada pela Hoochie Coochie que inclusive já ganhou o prémio fanzine (BD Alternativa) de Angoulême. Folheando as 280 páginas do 22º número ficamos sempre na dúvida se estamos perante um zine que engordou ou se é uma revista literária que mandou os academismos e equivalentes má-ondas para certo sítio... por um lado tem o ar industrial do offset mas a capa é feita em gravura (com duas passagens), ou seja, o lado manual e fetichista continua aqui. É uma tendência que ninguém se escapa, começa-se com um zine raquítico e fotocopiado, enche a lazer com mais páginas e colaboradores e depois fica uma coisa com ar profissional e tal. A tendência, foi o que aconteceu com L'Association, Amok e a própria Hoochie, é que depois começam a editar livros e as antologias são esquecidas. Porquê? Porque antologias dão mais trabalho - a reunir material, a aturar os artistas loucos e os autistas do costume, a desenhar o objecto, a seleccionar, etc... Um livro a solo é mais fácil porque se lida com menos pessoas. Basta ver a lista deste volume: o suiço Baladi (já editado em Portugal pela Polvo), o sul-africano Anton Kannemayer e o holandês Marcel Ruijters (ambos editados pela MMMNNNRRRG - curiosamente o Inferno é partilhado pelas duas editoras!), o finlandês Matti Hagelberg (Salão Lisboa 2005, Quadrado), o dinamarquês Søren Mosdal (Azul BD3?), o sueco & berlinense Lars Snujesson (Mutate & Survive, Quadrado, Nicotina'zine), o chinês Yan Cong (uma frescura no meio de tudo!) e ainda Guillaume Soulatges (que esteve em eventos da Feira Laica) que é um dos muitos e muitos franceses na publicação... Se já é cansativo ler esta lista reduzida por mim, imaginem o que será para o editor da compilação. No meio do "tijolo" ainda há uns anexos e cartazes surpresa, agora a sério, quem é que teria paciência para produzir uma coisa assim? Os franceses devem estar loucos!

Um ano antes foi publicado o sétimo número de Alkom'X (Garage L; 2013) dirigido pelo francês Alkbazz que reafirma essa loucura gaulesa ao ponto de me recusar a listar seja quem for porque estão cá TODOS! Tudo que é grafista DIY seja do norte ao sul da europa meteram-se nesta aventura de homenagear o manuscrito Vojnich - misterioso livro ilustrado com um conteúdo incompreensível. Imagina-se que tenha sido escrito há aproximadamente 600 anos por um autor desconhecido que se utilizou de um sistema de escrita não-identificado e uma linguagem ininteligível. É conhecido como "o livro que ninguém consegue ler" (wikipedia dixit).
Embora não seja a primeira vez que alguém se lembre disso - relembro o impressionante Codex Seraphinianus de Massó - o que aqui tem piada é assistir os autores a ficaram unificados grafico-colectivamente pela tal escrita que ninguém consegue ler. De resto, surpresas nas páginas são várias com dezenas de páginas duplas ou triplas para descobrirmos mais um desenho de meter o olho a sangrar.

Gracias à "chavalada" que me trouxe o Alkom'X do Festival Alt Com!

Cykle

Małgorzata Dmitruk
Centrala; 2013

Para não pensarem que não gostei do catálogo da Centrala, editora polaca (actualmente residente em Londres) e que nos visitou na última Morta, eis um livro fabuloso mesmo que se sinta que estamos perante o "cliché" do grafismo polaco - reconhecido nos famosos cartazes de cinema ou no trabalho de Joanna Latka, residente em Lisboa.
Cliché ou não, pegar nesta antologia de palmo e meio (é um A6 deitado) cheias de BDs feitas em estilo "art brut" e algumas vez com saturação de cor, admito que me faz o dia! As BD's são uma série de litografias sequenciadas que geralmente mostram um quotidiano que já não existe tal como não existem telemóveis e outros "gadgets" merdosos nestas imagens. Estas vidas relatadas são de algures do século XX numa Europa central em aldeias católicas até ao tutano ou cidades com pinta soviética, cheias de cenas mundanas mas de uma beleza simples que tem de ser apreciada com calma. A edição é um mimo com uma produção luxuosa, característica dos livros da Centrala.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

domingo, 28 de dezembro de 2014

Glória Glória Fetra Aleluia

A Cafetra 'tá de parabéns! Fez o evento do ano! Claro que estamos na recta final do fim de ano, com as listagens parvas de sempre e é complicado lembrar o que aconteceu de melhor do que ontem à noite - em Janeiro o que aconteceu mesmo? Maio? Ehm... Novembro houve alguma cena boa ou melhor? E pelo facto da Noite Fetra & Amigos ter sido logo após a ressaca do Natalixo? De ter sido feito depois dos piores dias do ano, será por isso que faz dela o melhor evento do ano sem mais nem menos? Bof! Nem é por aí, o que aconteceu ontem da tarde até às tantas da manhã na Caixa Económica Operária foi real e visionário.

Real porque a Fetra encheu um dos mais belos espaços de Lisboa - que não se percebe porque não tem dinâmica nenhuma! - e acreditem que não é fácil. O espaço é enorme e como disse não é um sítio de referência na noite lisboeta porque parece mais abandonado do que dinamizado. Já lá vou desde os anos 90 e nunca vi o sítio cheio, fosse com festivais das bandas Beekeeper, dos "hypes" do Rock promovidos pela Mondo Bizarre ou com o Noise da treta lisboeta. Ontem a Caixa bombou sempre de público!

Visionário porque os melhores "shows" foram de mulheres, ou seja, o Futuro é Feminino. Se fosse um feminista diria que estamos numa fase da sociedade ocidental em que os homens começam a mostrar que são impotentes e as mulheres é que têm o poder! Right on! Jejuno foi uma supresa com um Noise cheio de garra e os P.A.s a destruirem os tímpanos das pessoas, quase a entrar numa onda Harsh e marcial de fazer os meninos nazis do Noise mudarem de sexo e ideologia - embora já se saiba que qualquer gajo de Direita é um homossexual reprimido. Pega Monstro é aquele Pop/Rock naif cujo problema seria quando as duas irmãs aprendessem a tocar melhor, medo infundado, a banda está cada vez melhor sem perder o tal charme e vida. Tropa Macaca - são um casal e com uma mulher nos teclados! - foram puro Transe com videos artsy-fartsy porreiros. O festival valeu pelas damas porque os rapazes que tocaram por lá foram uns pichas frias, entesados mas com as bolas a taparem a visão, só chatito... Embora tenha de realçar que não pude assitir aos concertos da tarde por isso não sei se o Smiley Face foi divertido como sempre, se o Éme se matou de tanto "teenage ansgt" ou se Go Suck a Fuck foi aquele hipnótico má-onda, ou ainda o que fez o Ayres...  Pouco importa muito sinceramente. As artistas aqui referidas foram mais do que suficiente para fazer uma boa noite de música. Agora é preciso é recuperar de ontem... ai!

Fazer de novo, fazer do nada (Holambra)

Holambra: Rua Dória Vasconcelos
Ao contrário do que sucede na Europa, onde o espaço é confinado e as construções, encavalitadas umas sobre as outras, dão azo à formação de sucessivas camadas arqueológicas, no território brasileiro as marcas arquitectónicas transactas são, em boa parte dos casos, e na melhor das hipóteses, simplesmente ténues. A herança das civilizações indígenas mantém-se viva na toponímia, nas práticas alimentares, no hábito do sono em suspensão. Mas ela não se inscreveu de todo na pedra, como no México ou no Peru. Mesmo os vestígios do passado colonial ― igrejas, sobretudo ― preservados nas chamadas cidades históricas se afiguram insuficientes para afastar a impressão de um espaço imenso e que se mantém disponível para ser explorado de múltiplas formas, senão cultivado, alinhado, aterrado, escavado, transformado até ao absurdo. No domínio urbanístico, determinadas soluções que noutro contexto seriam prontamente rejeitadas como pirosas, sugerem, ao invés, uma modalidade anti-arqueológica de usar a história, uma modalidade segundo a qual tudo é válido, desde que não redunde em ruína: jardins japoneses, fachadas decoradas com colunas romanas, motéis à beira da estrada imitando castelos medievais, palácios das mil e uma noites ou aldeias esquimós, cidades planeadas apontando decididamente para o futuro, como Belo Horizonte ou Brasília…
O ónibus 693 aproxima-se de Holambra. Pela janela desfilam o antiquário-restaurante Carroça, o motel Obsessão e uma loja que vende cercas, pórticos e outras infraestruturas de roça, expostas a céu aberto ao lado de estátuas decorativas de bois em tamanho natural. O ambiente é marcadamente rural. Pouco depois avistam-se as portas da cidade, erguidas à imagem de um prédio holandês, com grandes janelas quadriculadas e frontões em degraus. O ónibus abranda. É altura de sair. 
Holambra: o nome deriva da junção das palavras ‘Holanda’ e ‘Brasil’. O lugar começou por ser uma colónia de imigrantes holandeses que vieram para o Brasil logo após a II Guerra Mundial e aqui formaram uma cooperativa agrícola dedicada ao cultivo de flores. Tornou-se depois numa povoação e, em 1991, foi elevada à categoria de município. Alguns anos mais tarde, Holambra passou a ser reconhecida como estância turística pelo governo do Estado de São Paulo, muito por causa da sua Expoflora, evento que se realiza todos os anos em Setembro e que granjeou a reputação de maior feira de flores e plantas de toda a América Latina. Para além disso, a paisagem urbana remete-nos, sem mais delongas, para o universo do norte da Europa ― embora, no fim de contas, e como a sequência do próprio nome indica, seja o Brasil que acabe por sobressair. 
A Rua Dória Vasconcelos, também conhecida como Rua Turística, encontra-se em obras nesta segunda-feira de início de Novembro, o que talvez ajude a explicar a ausência de movimento. Nos primeiros quarteirões, as fachadas mantêm-se fiéis ao padrão tradicional indiciado pelas portas da cidade. O único café aberto oferece doçaria variada à base de frutos silvestres, para degustar ao som de música pop cantada em holandês. Do lado oposto da rua, uma loja de souvenirs exibe um escaparate com socas de diversos tamanhos. A roda dos cinco sentidos completa-se. 
Moinho dos Povos Unidos
Perambulando, flanando por Holambra… Ruas praticamente sem movimento, vivendas atrás de vivendas, todas elas com jardins bem cuidados, algumas continuando a seguir o estilo holandês, ainda que de forma mais discreta. A estrada leva-nos até um lago artificial cercado por grandes árvores. Talvez num dia de inverno e com o céu coberto de nuvens se possa experimentar a sensação de estar a caminhar por um qualquer subúrbio da Europa. Agora, no calor de uma Primavera adiantada, é mais difícil chegarmos lá. Avançamos até ao outro extremo da cidade, balizado pelo Moinho dos Povos Unidos, também ele apresentado como o maior de toda a América Latina (assim se constrói uma história à revelia da história…). E pronto. Resta voltar para trás e seguir tranquilamente até ao terminal central: um confortável alpendre a imitar uma casa, de novo com enormes janelas em quadrícula. Os passageiros que esperam, porém, são bem brasileiros: homens de bigode e chapéu de aba larga, com a pele escura e curtida pelo sol, mulheres avantajadas e de blusa justa, moças de minissaia… O ónibus para Campinas passa às quatro horas…


sábado, 27 de dezembro de 2014

De Belo Horizonte ao Inhotim





Belo Horizonte: Vista para a Avenida Afonso Pena, com parque de estacionamento em primeiro plano e favela em fundo
A pátina ainda não desceu sobre a capital de Minas Gerais. Fundada em 1900 à imagem de Paris para servir, décadas mais tarde, de laboratório de experimentação urbana à parelha Kubitscheck-Niemeyer, a cidade de Belo Horizonte brinda o viajante com algumas linhas elegantes e ousadas, alguns contrastes pensados, dando a impressão de não ser nem demasiado velha nem demasiado nova. Os prédios ainda são prédios, as ruas ainda são ruas. Será, no fundo, uma cidade vivível e onde se sobrepõem diversas modalidades de ocupação urbana ― das precárias tendas dos sem-abrigo que se erguem ao crepúsculo nalgumas zonas nobres do centro ao recém-construído edifício Michel Foucault, no bairro classe média do Prado. Mas adiante. Saindo da capital para sudoeste, atinge-se, ao fim de hora e meia, o Instituto Inhotim, nas imediações da povoação de Brumadinho. O Inhotim é um enorme parque consagrado à arte contemporânea, repleto de galerias e instalações ao ar livre, com jardins desenhados pelo arquitecto paisagista Burle Marx. A instituição, fundada em 2002 nos terrenos de um insigne empresário mineiro, assume-se hoje como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público e ponto de interesse turístico, onde a estética e a botânica se encontram com a responsabilidade social e o grande capital.

Instituto Inhotim

É domingo e faz bastante calor. No eixo laranja, a Galeria 15 alberga as célebres Cosmococas de Hélio Oiticica e Neville de Almeida. No interior arrefecido pelo ar condicionado, o visitante pode escolher entre cinco salas diferentes, cada uma delas propondo uma combinação particular de sons, imagens e experiências tácteis: por exemplo, balançar numa rede de dormir ao som de Jimi Hendrix ou, quem sabe (se o ar condicionado não se intrometesse tanto…), refrescar o corpo numa piscina equipada com balneário, por ora abandonada.
Mais à frente, a Galeria 18 é um velho estábulo que esconde uma obra de Carlos Garaicoa, Ahora Juguemos a Desaparecer (II), de 2002. No meio da escuridão, acercamo-nos de uma mesa de metal sobre a qual jaz uma cidade em miniatura bruxuleando à luz das velas. Aproximamo-nos ainda mais e percebemos que as velas são os próprios edifícios, feitos em cera, e que vão derretendo lentamente sob as chamas dos pavios que se mantêm acesos. Reparamos então tratar-se de uma metrópole compósita, misturando prédios perfeitamente anónimos com construções emblemáticas: é possível distinguir a catedral de Notre Dame, o Vaticano, o Empire State Building e o que resta da torre Eiffel. Dizem que o desvanecimento demora três a quatro dias a completar-se. Ao fim desse tempo, a massa de cera é recolhida e colocada em moldes com a forma dos mesmos edifícios. A maqueta volta a ser disposta sobre a mesa e, uma vez acendidos os pavios, o jogo recomeça. A instalação compreende ainda umas quantas câmaras de vídeo que vão registando e projectando o lento desaparecimento da cidade (a legenda da obra refere «vídeo, mesa de metal e velas»). Se o que aqui se entrevê reenvia, inevitavelmente, para uma genealogia de delírios urbanísticos onde também se inserem as fantásticas construções em Lego de Douglas Coupland ou a versão comestível de São Paulo confecionada por Song Dong a partir de bolachas e rebuçados, o que surpreende em Garaicoa é a sensação de intemporalidade que se desprende da sua cidade de sonho. Não fosse o vídeo, que dá ao conjunto o ar expectável de uma instalação contemporânea, e juraríamos estar em presença de um fantasmagórico divertimento barroco da era pré-industrial…
Regressamos ao exterior e damos com uma segunda Piscina, esta do argentino Jorge Macchi, esculpida em 2009 especialmente para o recinto do Inhotim. Aparentemente, uma piscina comum: distingue-se apenas pelos degraus que levam para dentro de água, descendo a todo o comprimento de um dos lados à imagem dos marcadores de uma lista telefónica, o primeiro com a inscrição ‘AB’, segundo com a inscrição ‘CD’, etc. Não seria preciso tanto. Como o calor aperta e o tanque está cheio, alguns visitantes atrevem-se à performação da obra de arte. As pessoas descalçam-se e entram na piscina de jeans, saias, calções, t-shirts… O facto de se estar entre amigos convida à descontração, ao chiste, ao despudor. Uma mulher de t-shirt molhada justifica-se perante uma amiga: «É que o seu homem está aqui, o meu tá em São Paulo!» Portanto, Macchi - 1, Oiticica / Almeida - 0. Resultado justo, mesmo reconhecendo que o time vencido actuou condicionado…

http://www.inhotim.org.br/




sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Scorpio Rising : Transgressão Juvenil, Anjos do Inferno e Cinema de Vanguarda / ESGOTADO

eis um livro que deveria ter saído, na colecção THISCOvery CCChannel, antes de Maio de 2009 por causa de uma verdadeira "Kenneth Anger-Mania" (de repente toda a comunidade artística de Lisboa conhecia este autor!!), graças ao ciclo dedicado ao autor na Cinemateca de Lisboa, Fundação de Serralves e Galeria ZDB, onde o artista norte-americano esteve presente
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Kenneth Anger é um realizador controverso, com múltiplas linhas de ambiguidade, numa teia de símbolos e significados, de paradoxos, de ícones, e de manipulação violenta do imaginário
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Ondina Pires (ex-Pop Dell'Arte, The Great Lesbian Show), faz neste livro ensaístico uma reflexão riquíssima sobre vários aspectos da cultura underground do século XX. Embora se centre numa análise de um filme do mítico realizador este livro é muito mais do que isso, uma vez que todos os aspectos invocados no seu filme são explorados a fundo por esta autora. Temas como os gangues, a violência, o Cristianismo, o Nazismo, a máquina, a civilização motorizada, os Estados Unidos, a apropriação de imagens, o cinema, a banda desenhada, a velocidade, o século XX, são tratados de forma fecunda e multilinear. Este livro cativará todos os que se interessem pela cultura enquanto local de aparição de fenómenos extremos.
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capa de João Maio Pinto, design por Ecletricks, prefácio por Carlos Vidal
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152p. 22x16cm, capa a cores
ISBN: 978-989-95447-3-4
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pode ser que ainda encontrem exemplares nas lojas Letra LivreFábrica FeaturesRastilho e El Pep.

versão e-book na Todoebook
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historial: lançado a 15 de Maio de 2009 na ZDB com a presença da autora, Carlos Vidal e Fernando Cerqueira, juntamente com o número nove da revista Acto ... Finalista e Vencedor da votação pública na categoria de Prémio de Melhor Ilustração Original (capa) dos Prémios de Edição LER / Booktailors 2010 ...

Feedback: A conclusão é que Scorpio Rising faz bem à cabeça: está muito bem feito, com uma sólida argumentação e ainda melhor documentado. É sempre um grande prazer ler livros escritos por quem sabe do que está a falar e Pires é um bom exemplo dessa premissa. David Soares ... Um natural apelo aos apreciadores de cinema mais experimental, este livro será também do agrado dos apreciadores de outras formas de contracultura. Os Meus Livros ...

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

It's fun to have fun!

O que leva um autor de BD conhecido da nossa praça (e que não revelaremos a identidade) desenhar um zine como Ceci n'est pas une bite de canard?
O zine foi editado pela nova 40 Ladrões, é composto por 16 páginas A5 com BDs e desenhos que usam imagens de outras BDs comerciais mas construídas com várias sobreposições de desenhos e com "detournements" nos textos. Será que é para gozar com essa cambada de pichas-moles dos "bedófilos"? Para subverter uma cultura estereotipada da Disney, Marvel, fumettis porno e Manga? Por puro prazer gráfico? Por todas estas razões? Algumas delas razões podem ir até aos tempos das Tijuana Bibles (revistas norte-americanas pornográficas de BD dos anos 20 e 30) em que segundo as palavras de Art Spiegelman a sua razão de sucesso passava pelo the thrill of violating copyright and licensing law as with sexual need. Outras razões é porque vivemos uma cultura de "copy / paste".
Este "Isto não é uma pila de pato" vai buscar emprestado o Ceci n'est pas une Pipe do quadro "A Traição das Imagens" de René Magritte e o autor do zine tal como Magritte também não nos quer mentir. Estas BDs rapinadas não são nem vida real porque uma pila de pato é um caso sério (basta procurar no 'net quem quiser ficar enojado ou fascinado com o orgão da ave) e o que se sente ao ver este zine é o mesmo o que sente quando se vai visitar uma fábrica de salsichas... deixa-se de comé-las! O "universo" Disney (ou os outros referidos)  são uma fantasia degenerativa que merece ser esticado a outros niveis, a maior parte deles proíbidos pelas empresas que detêm os seus direitos. Mas mais do que um autor poder reclamar as fantasias para o seu trabalho, acabando até por as renovar, faz parte da luta deste século estancar os abusos da cultura das empresas multinacionais e do capitalismo selvagem que estão a transformar os humanos em pequenos idiotas bárbaros.
Este zine coincide com este ano de 2014 marcado pelo triunfo da barbárie a julgar pelo sucesso da Comicon Portugal, um evento de cultura Pop que nada ofereceu para além de vaidade e exibicionismo do próprio público. Ou seja, o evento era feito pelos próprios pagantes (que praticam Cosplay) e estes lá dentro não tendo nada para fazer só lhes sobrava comprar o que estava nos stands - convenhamos depois de 15 minutos de mostrar a bundinha de Darth Vader o que resta fazer? Segundo contam as empresas que lá estiveram, o consumo foi histérico, seja para comprar "action figures" seja para livros de BD de qualquer espécie. Nada contra o facto de uma criança ou um adulto fazer costura e mascarar-se de Pokemon gigante e nada contra eventos que o único objectivo é mostrar as máscaras e vestimentas feitas, cada um pode-se divertir como quiser! O que é vergonhoso é o evento obrigue a quem o faz existir a pagar entradas. É aquela máxima "pagar para trabalhar" que parece tão medieval mas tornou-se perfeitamente contemporânea à cara-podre bem sorridente. Os fãs não sabem organizar-se por eles próprios e criar os seus próprios eventos já que sabem costurar? Ou só nas "Cons" (não significa "aldrabar" em inglês?) é que se pode vestir de super-herói sem a DC por um processo judicial em cima? De repente até a BD Amadora já parece um oásis de cultura... Será que lá aceitam mostrar pilas de patos? Sem dar numa de "con man" é melhor comprarem este zine antes que venha a carta de advogados.

Na Feira das Almas uma presença regular é o da ilustradora Margarida Esteves que tal como dezenas de outras pessoas que se dedicaram à Ilustração encontraram um mercado sem força nos últimos 10 anos. Alguns culpam a crise outros os conteúdos baratos digitais mas como bem sabemos o que se passa é apenas falta de cultura sobre a imagem da sociedade portuguesa em geral e em em especial nos jornais e editoras - lembram-se quando o jornal Público decidiu deixou de usar ilustração ironicamente no mesmo ano que venceu os mais importantes prémios internacionais de imprensa graças aos desenhos de André Carrilho e outros ilustradores? Pois...
O resultado é que a ilustração tem aparecido ou como uma substituição do mercado de galeria de Arte (no caso de muitos graphzines) ou como um novo artesanato urbano que decoram produtos. Prefiro a segunda opção porque decorar a nossa existência de forma mais personalizada é um acto de rebeldia contra as t-shirts dos Ramones da H&M ou carteiras da Hello Kittie. O problema tem sido as limitações artísticas das ofertas dessas ilustrações que aparecem, geralmente como coisinhas demasiado queridinhas ou sem imaginação. O trabalho da Esteves não é a minha onda, isso é certo, mas no meio dos seus produtos "cute" encontrei um zine bem engraçado que pretende ser uma série e que só arrisquei o segundo volume, o Norberto nas Montanhas. Trata-se de um urso que se mete em sarilhos ou que apanha com malta estranha - como o Sr. Melro que colocou uma pata extra na órbita do olho que já não funcionava (oh yeah!). Réplica da lógica "Os Cinco na Coina", "Uma Aventura em Chelas", "Anita muda de sexo",... ok, ok, não é bem isto mas perceberam... Ah! Norberto no próximo volume vai apanhar chuva e eu vou ver se ainda o apanho! Esteves está de parabéns desde logo por não ter ficado pela mera ilustração de postais e afins ou de ter feito um graphzine cheio de desenhos à toa. Dirigiu a sua criatividade para um zine de texto ilustrado que merece ser seguido!

Saiu o novo volume do Portuguese Small Press Yearbook, desta vez dedicada ao tema do "trabalho colectivo" onde se encontra a "nossa" Chili Com Carne! Importante este trabalho de compilar informação e testemunhar prá História mas o PSPY poderia ter um bocado mais de joie de vivre e sobretudo um design mais arriscas mesmo que saibamos que não é fácil ter informação em trilingue. Se as editoras deste anuário têm referências em projectos editoriais com grafismos ousados como os do Clube do Inferno ou Oficina Arara, não percebo a "cegueira"... Deveriam contratar O Panda Gordo que em Maio lançou publicamente o relatório de projecto Sobre a concepção, edição, produção, distribuição, etc... de Fanzines, trabalho universitário da licenciatura de Design de Comunicação das Belas Artes do Porto. Quer em atitude quer em aspecto mete o PSPY num canto. Parte relatório formal (cheio de citações para a academia encher o olho) parte desabafo de fracasso e glória de quem descobriu a libertação artística através do formato fanzine. Entre as diatribes com o mundo universitário (e Bolonha nada acrescentou, Panda, a universidade sempre foi uma grande merda), o funcionalismo e o empreendorismo (ler, falência do capitalismo), o Panda processa as experiências que teve com a sua envolvência na cultura DIY nos últimos anos e como estas práticas modificaram o seu modo de pensar sobre criatividade e as consequentes questões como a política e a economia. Sendo o documento mais importante sobre fanzines desde os textos de Daniel Lopes (in Hoje, a BD 1996/99), os "bedófilos", os "cosplayers", as ilustradoras e as académicas deveriam ler isto, talvez não mudassem de opinião e posição no mundo mas pelo menos não poderiam dizer que não sabiam que [cortar] / [colar]