quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Amazónia: a selva possível...



O 'barraco' de Valdo, nas margens do rio...

[De um caderno de apontamentos]
1 de Outubro
Planeando uma possível visita à Amazónia, consultando guias de viagem em formato pdf, sítios na Internet… Viagem de barco, hotel na selva ou expedição privada? Nas imediações de Manaus ou mais longe? Armar em explorador intrépido ou aceitar a impossibilidade de escapar ao pacote turístico, à convivência forçada com companheiros de ocasião imersos nas suas situdes e vendo o regresso como coisa segura? Não adianta iludir a questão fazendo notar que tudo é, como aliás sempre foi, mediado. O que importa perceber é se existe alguma possibilidade de sair dos contornos previamente definidos de uma viagem e encontrar uma qualquer dissonância, uma abertura. Nas cidades pode-se pelo menos escolher os percursos. No meio da floresta ficamos nas mãos de quem nos guia e os limites da experiência tornam-se mais claros. Que forma assumirá então o imprevisto? Um dejecto de plástico arrastado pelo rio? Uma inundação súbita?

[De um e-mail]
24 de Novembro
Li o teu ensaio sobre o contributo da dupla Saidenberg-Canini para a personagem Zé Carioca. Edificante, como sempre. Acerca de Renato Canini, há um detalhe que me parece revelador. Diz-se que ele nunca pôs o pé no Rio de Janeiro, tendo vivido sobretudo no sul do Brasil. Ora, boa parte do encanto gráfico do Zé Carioca desenhado por Canini advém precisamente do retrato sintético mas bastante sensível que ele nos dá do Rio de Janeiro, com os seus morros toucados de favelas, a sua colorida e engenhosa malandragem, etc. Neste sentido, Canini insere-se numa tradição de autores de banda desenhada que ― num movimento de sentido inverso ao do registo autobiográfico ― levaram os seus heróis para mares, desertos e selvas que eles próprios nunca conheceram pessoalmente e que todavia conseguiram representar de modo eficaz, jogando com os ícones disponíveis. 
A propósito, parto em breve para uma curta expedição pela Amazónia que, no meu imaginário, também terá algo a ver com Tintim, Spirou e Fantásio, Corto Maltese, Bernard Prince ou o Monstro do Pântano...

[De um postal]
30 de Novembro
Cheguei hoje a Manaus. Não sei se por ser Domingo ou por causa do calor imundo, mas as ruas do centro estavam desertas à hora de almoço. Fechei-me no hotel para recuperar algum sono perdido. Pelo fim da tarde, fui dar uma volta pelo Largo de São Sebastião e assisti, no Teatro Amazonas, a um concerto de Bach. Depois de amanhã embrenho-me na selva com um guia caboclo. O programa: navegar de canoa ao longo de um rio, parando de quando em quando para umas caminhadas pela mata, onde também acamparemos. (…)

[De um diário de viagem]
3 de Dezembro
Primeiras impressões da floresta: uma verticalidade impressionante, marcada pelas linhas aprumadas dos troncos das árvores, que ascendem duas dezenas de metros e só depois, numa espécie de segundo patamar da mata, se desdobram em ramos cheios de folhas e de onde pendem, por sua vez, dezenas de cipós. O padrão vertical é todavia complementado, mais próximo do solo, por uma quantidade de árvores tombadas pelo vento e que se atravessam incessantemente no nosso caminho. Aqui e ali, são visíveis os vestígios de passagens anteriores do meu guia: restos de uma grelha de madeira, uma corda estendida entre duas árvores para pendurar um toldo impermeável, algumas garrafas vazias…

Grelha de madeira
4 de Dezembro
Seguimos ao sabor da corrente, focando as margens com a lanterna como fazem os caçadores da região, procurando interceptar o brilho dos olhos dos animais noturnos (o grupo com o qual nos cruzámos ao fim da tarde disse ter visto uma onça a atravessar o rio…). Nada. Abstraio-me, por momentos, na contemplação de Orionte, cujo belo desenho domina o corredor de céu por cima das nossas cabeças…

4 de Dezembro: acampamento na mata...
 5 de Dezembro
Diz-me o guia que foi ele quem baptizou os vários lugares por onde passámos (antes não viveria aqui ninguém). Assim, as duas grutas do primeiro dia receberam os nomes, respectivamente, de Gruta do Morcego e Gruta dos Taititús, em virtude dos animais que as frequentavam. A cascata do segundo dia foi chamada de Duas Cachoeiras, por ser precedida de uma pequena queda de água. Uma outra cascata foi chamada de Lua Branca, porque o seu caudal lembra a forma de um quarto crescente quando o igarapé corre na máxima força. Uma língua de areia onde descansámos ficou conhecida como Praia da Ilha, dado haver uma ilha em frente. E o caminho proposto para amanhã é a Trilha Central, por levar ao «centro da mata, longe da casa, longe do rio».

6 de Dezembro
O tempo decorrido desde a última utilização deste percurso foi suficiente para que muitas árvores tombassem e outras começassem a crescer, apagando o leve sulco da trilha. Valdo partiu há um bom bocado, de facão em punho, tentando descobrir a continuação do caminho. Os cães foram com ele. Sinto-me cansado e algo nervoso perante a ausência prolongada do meu guia, que me deixou especado, em plena floresta, munido de um bloco de desenho Canson e marcadores Uni Pin. E se Valdo não conseguir regressar para o sítio onde me encontro? A mata é tão cerrada… Por enquanto, tudo parece tr



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