Aproxima-se Angoulême e já se anuncia-se um novo golpe "situacionista" da 5eme Couche! Excelente pretexto para fazer um resumo do que eles têm feito nos últimos anos para tornar a nossa vida muito mais excitante nesta luta eterna contra o aborrecimento da vida contemporânea.
Em 2006 saiu o primeiro "detournement" de Ilan Manoauch - Vivre Ensemble em que um álbum inteiro do Petzi foi digitalizado e o Petzi bem como a maior parte das personagens desapareceram da BD - ficando apenas o pelicano com os cenários, "coisas" e sobretudo balões de fala a boiarem numa solidão desconcertante. Um exercício OuBaPo que deveria ter saído pela L'Association se estes não andassem frouxos nesta altura... Mais tarde, em 2012 em pleno ano de Art Spiegelman no Festival de Angoulême, sai outro "detournement", o Katz (todos os animais da BD foram substituídos por cabeças de gatos) que teve um destino cruel porque a edição foi destruída. Mas tudo bem em 2013 saiu logo o Meta Katz para "ladrão que denuncia ladrão, mil anos de perdão!" Depois disto tudo eis que aparece no ano passado, o álbum Les Schtroumpfs Noirs na mesa do 5éme Couche! Uma edição que reproduz na integra o álbum Os Strumpfes Negros mas todo impresso a azul!!!
Originalmente editado em 1959 pela Dupuis, esta BD mete os pequenos homens azuis com um problema a lembrar uma praga de zombies, ou seja, o Strumpfe que for mordido por um Strumpfe negro (que foi picado por uma mosca negra marada qualquer), fica também negro, a saltitar, a gritar “gnap gnap gnap” feito um selvagem. Foi uma BD que foi considerada racista, sobretudo nos EUA, chegando a ter, por aquelas bandas, uma versão em que o negro foi substituído pelo roxo. Com esta “nova” versão pirateada, que o editor Xavier Löwenthal afirma publicamente que não sabe como surgiu – no Libération afirma que um rapaz da DHL chegou lá ao stand e entregou-lhes uma caixa cheia destes livros azuis – mas dizia, com esta nova versão acaba o racismo!!! Porque todos os Strumpfes, azuis ou negros, estão impressos a azul!
Mais extremo ainda é que todo o álbum original foi “rapinado”, ou seja, não há depósito legal ou ISBN a acusar quem o fez, o nome da editora original (um gigante do mercado da BD que detêm o Spirou, por exemplo) está impresso na capa. Mais, o álbum original é constituído por três aventuras dos Strumpfes (“O Strumpfe voador” e “O ladrão de Strumpfes”) que também são reproduzidas no “álbum azul”. A única coisa (fora esse hilariante azul omnipresente) que “falha” é uma página (a página 54) que não foi impressa - na BD "O Ladrão de Strumpfes", o que tem a leitura que tem...
Mas o melhor trabalho para abalar o sistema de crenças da BD foi o caso Judith Forrest! Em 2009 foi editado o livro desta autora, 1h25, que teve grandes resenhas críticas pela imprensa, chegando-se a afirmar que este seria a BD autobiográfica que atingia a maior sinceridade dentro desse género. A autora foi convidada para entrevistas na rádio e TV e o livro teve algum sucesso comercial. No ano seguinte saiu Momon em que explica porque a autora após uma "one night stand" com Xavier, este não se lembrava dela no dia seguinte - os homens são uns porcos, né? Mas a razão por Xavier não se lembrar de ter ido prá cama com a autora é porque a autora não existia... Nas páginas de Momon, Xavier e os autores William Henne e Thomas Boivin numa viagem de carro vindos de um festival de BD perguntam-se porque a 5éme Couche, sendo uma editora tão boa não tem impacto mediático... Alguém sugere que lhes falta uma autora de BD autobiográfica que conte histórias de ir ao cu. Alguém se lembrou que porque não se edita uma autora dessas? "As nossas autoras são artistas, pá, nunca fariam histórias de ir ao cu...". Alguém conclui: "Bem, então porque não fazemos nós isso e assinamos como se fossemos uma?"
De referir ainda o belíssimo 978 (2013) de Pascal Matthey, autor que já conhecia de umas BDs menos interessantes da corrente autobiográfica pela L'Employé du Moi e que andou a coleccionar panfletos / brochuras / catálogos publicitários de BD comercial e realizou este bizarro Genesis... Genesis? Não sei se podemos definir assim mas o que acontece é que estamos perante um simulacro de um álbum franco-belga de BD, ou seja, 40 e tal páginas perto do A4 a cores com uma capa dura. O conteúdo é um trabalho um "comix remix", uma BD de colagens em que as imagens originais foram de tal forma fragmentadas que juntas criam padrões abstractos. A questão que se coloca sempre nestes casos é: pode-se ler uma BD abstracta? Que o Pedro Moura responda a isso...
A verdade é que temos toda uma liberdade de interpretar o que vemos, quadrado a quadrado em sequência, e uma "possível leitura" até porque se topam metamorfoses de formas que indicam uma "acção" de algo, de quê? Não sabemos, talvez do lixo a ser reciclado numa máquina? Lixo de milhares imagens medíocres geradas pela BD comercial mundial? O título do álbum refere-se ao número de ISBN da Bélgica e esse seria a maior referência para o livro: o regurgitar de chavões gráficos dessa indústria? Parece um catálogo disfuncional de cores e formas do mercado de BD mas independentemente disso, a mente procura sempre sentidos, e como bom cristão que sou levei para um nascimento e destruição de cosmos pelas várias vinhetas, uma luta de dias e de noites eternas, etc... Foi o meu "glitch" mental sobre esta obra porque para mim foi dos livros mais explosivos de 2013!
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