vinheta de Anica Govedarica |
Já todos devem saber que faleceu, esta semana o autor de Banda Desenhada Fernando Relvas. Como escreveu Pedro Moura no seu blogue Ler BD:
O Relvas foi, a nosso ver, um “artista de artistas”, naquele sentido em que a sua lavra e obra teve mais impacto sobre toda uma (ou mais) geração de artistas que se seguiram do que propriamente junto a um público mais massificado.
Concordo com o "artista de artistas" mas coloco a questão do público pois bem me lembro, em 1999 numa tasca qualquer da Ribeirinha do Porto à noite, alguém levantar a voz e dizer "tu é que és o Relvas? das BDs?" Ou seja, "alguém do público" identificou-o e amava o seu trabalho. Relvas influenciou uma geração circunscrita aos anos 80, uma época negra da BD portuguesa, em que só se publicava lixo do pior. Autores portugueses nem vê-los - a excepção será o Arlindo Fagundes, com La Chavalita que ainda hoje como obra mantêm o nível comparando com o que pouco que sobra dessa década. Ou seja, houve poucos livros e quase nenhum de jeito. Foi uma década que não houve nem uma Visão nem uma Lx Comics. Revistas especializadas haviam muitas mas todas elas anacrónicas e tristes. A safa de um artista de BD pelos vistos eram os jornais e revistas generalistas - quando havia imprensa, lembram-se? - e foi nesse espaço onde Relvas foi o Rei Absoluto com as suas crónicas urbanas e boémias.
Apesar de nunca termos publicado algum grande trabalho do Relvas, até na Chili Com Carne a sua figura foi-nos surgindo nos últimos anos de formas indirectas (retratado e referido). Nem a Chili que se considera marginal, conseguiu fugir à sua importância.
[Lisboa é very very typical] Relvas aparece numa BD produzida pela sua mulher Anica Govedarica (imagem) no nosso livro sobre estrangeiros a viverem em Lisboa. É uma cena com a autora a auto-representar-se como uma gaivota... Foi um dos grandes feitos de Relvas na BD portuguesa a de mostrar Lisboa, a capital de um país em plena transformação de uma Revolução desiludida para uma Democracia cheia de Espectáculo. A marginalidade e a boémia aparecem na BD portuguesa, bem como a urbanidade e a contemporaneidade. De L123 ao Karlos Starkiller há droga, copos e bifas! Já havia libertinagem na Visão mas perdeu-se o rasto...
[Revisão] Num país de edição fraca, ele foi dos primeiros autores de BD a ver a sua obra a ser reeditada em livros. Isto ainda numa altura que ou se produzia BD Histórica em álbum franco-belga ou então... nada. Aconteceu em 1997 com Karlos Starkiller pela BaleiAzul / Bedeteca de Lisboa, logo no ano seguinte com L123 (seguido de Cevadilha Speed) pela Associação Salão Internacional de BD do Porto até mais recentemente o importante Sangue Violeta (El Pep; 2014). Glórias mais do que merecidas e quase todas estas reedições tinham uma boa qualidade editorial! A sua obra está presente no mercado livreiro e assim se espera que se mantenha durante muito tempo. Felizmente este outro grande feito, proporcionou a que não termos de precisar de recuperar este autor do esquecimento, situação que a antologia Revisão : Bandas Desenhadas dos anos 70 pretendia corrigir e que conseguiu, trazendo à luz pública nomes esquecidos dos anos 70! Ainda assim achei que seria importante a publicação de uma cómica BD originalmente d'O Estripador (1975). Nela relata como seria a redacção desse projecto editorial naquela década caótica. Será das poucas BDs onde se vê os bastidores de pessoal da BD a trabalhar numa revista, eles todos barbudos revolucionários com pinta de consumirem liamba. Só por isso, obrigado Relvas!
[Punk Comix] No livro sobre o "Punk e a BD portuguesa" refiro que o mercado da BD nos anos 80 era tão atrasado que até para aparecer um mero Punk (personagem que seria normal aparecer nessa altura nem que fosse como "mobiliário urbano") numa BD estrangeira traduzida e publicada em Portugal só encontrei uma situação! Uma do francês Serge Clerc no sebento Jornal da B.D. Isto é o indício mais óbvio de como quem dominava o mercado era velho, atrasado e cego. Portugal nunca foi como Espanha apesar da vizinhança e das coincidências históricas. Lá houve revistas ao sabor do seu tempo como a El Vibora ou a Madriz, cá quase nada... Cá quem conseguia aceder revistas espanholas ou brasileiras lá percebeu que BD não significava apenas histórias de caubóis e o raio que o parta! Não admira que alguns putos tenham lido o Sangue Violeta todas as semanas no jornal Se7e e se tenham passado da cabeça ao ponto de começarem a fazer BD, tal como aconteceu com as mil bandas que começaram porque viram Sex Pistols e Ramones ao vivo. Ok, sei que exagero, há que fazer uma proporção (bem descendente) à realidade portuguesa e da banda desenhada, claro está, mas fica bem dizer isto. Ele merecia estes exageros...
Marcos Farrajota
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