Sai este fim-de-semana no TCAF o número 10 da revista TRIP, do Canadá, que inclui um dossier especial "Portugal" com BDs inéditas de vários artistas, a saber: Gonçalo Duarte, Francisco Sousa Lobo, Cátia Serrão, Mariana Pita, Tiago Baptista, Hétamoé, Daniel Lima, Bruno Borges e Xavier Almeida.
A capa é de José Feitor e a coordenação do dossier ficou a cargo de Marcos Farrajota e Sara Figueiredo Costa, esta última escreveu também este texto introdutório:
A ideia de uma unidade nacional
continua a alimentar ilusões. Em Portugal, quando queremos falar de nós a quem
não nasceu ou não vive cá, temos os oceanos, a expansão marítima, o fado, o
futebol... os mesmos temas de sempre, pisados e repisados para melhor se
adaptarem a uma narrativa onde somos sempre heróis, mesmo que em pequena
escala, sonhadores, melancólicos e aventureiros. Falamos da expansão marítima,
mas esquecemos a colonização e os escravizados que daí resultaram – às vezes
falamos disso, mas sempre afirmando que “a nossa colonização foi mais benévola
do que outras”, como se medir a crueldade e a opressão fosse um bom modo de
olhar para o passado. Falamos do fado como se não houvesse outras expressões
musicais, artísticas, a marcarem o nosso percurso comum. Falamos, sobretudo, de
uma história cristalizada numa certa ideia de grandeza cruzada com falsa
modéstia e andamos a falar nisso há demasiado tempo.
Quando começámos a pensar numa
antologia de autores de banda desenhada portugueses, preferimos alterar o
ângulo do olhar. Ver outras coisas, pensar de outra forma, questionar mais do
que enaltecer. E procurar gente que quisesse assumir essa liberdade de olhar. Esta
não é, por isso, uma antologia institucional, preocupada com a suposta
representatividade dos autores incluídos ao nível do estilo, do reconhecimento
ou da frequência com que publicam relativamente à produção portuguesa de banda
desenhada. Ainda que aqui se incluam autores e autoras que seguramente
integrariam uma antologia como essa, o que pretendemos, acima de tudo, foi
reunir um conjunto de autores contemporâneos de banda desenhada que
respondessem a esta ideia de um certo ar do tempo. Essa era a contemporaneidade
que almejávamos alcançar, um olhar para aquilo a que Charles Baudelaire, na
Paris do século XIX, definiu como spleen, a mistura indefinível de
temas, emoções, dúvidas e pesadelos capaz de capturar o espírito de um tempo. E
também de um lugar.
Curiosamente,
spleen, em inglês, significa “baço”, um órgão que não será o primeiro a
vir-nos à ideia quando pensamos no corpo humano mas que, ainda assim, é
fundamental para a produção de novas células e para a eliminação das velhas.
Foi também isso que quisemos fazer. Baudelaire está morto há muito mais de um
século, os cafés sombrios onde se traficavam livros, drogas ou ilusões foram
substituídos por estabelecimentos gourmet e Lisboa nunca foi Paris...
Ainda assim, o spleen permanece como um bom conceito para lermos as
cidades e a sua respiração, uma espécie de microscópio por onde observar o
tempo e o lugar.
O tempo é agora e o lugar é
Portugal. Temos uma meteorologia invejada, muitos turistas, companhias low-cost,
morangos no Inverno e toda a espécie de melhorias tecnológicas inimagináveis há
uma ou duas décadas. Depois da Revolução dos Cravos, a 25 Abril de 1974,
passámos a ter democracia, coisa que por vezes parecemos esquecer. Com a
democracia vieram as condições sanitárias que faltavam em muitos lugares, a
literacia, o acesso à saúde e à educação, os direitos que a ditadura negou durante
décadas. Ainda assim, não estamos livres de problemas, tragédias e acidentes,
como as centenas de mortos nos incêndios de Verão, a disfuncionalidade do
sistema nacional de saúde, o racismo estrutural numa sociedade onde continuamos
a achar que há pessoas que não merecem viver aqui, o facto de termos canais
televisivos que podem dedicar quase uma hora às notícias do futebol e apenas um
ou dois minutos à guerra na Síria, por exemplo. Talvez devêssemos pensar mais
na nossa vida, e no modo como a vivemos em comunidade, em vez de nos dedicarmos
a caçar unicórnios... E de que unicórnios falamos? Entre morangos no Inverno e
juízes machistas a quem não parece mal que uma mulher adúltera seja vítima de
violência doméstica, temos de tudo. É capaz de ser este o nosso spleen,
cheio de sonhos de grandeza nas Eurovisões e nas Copas do Mundo e cheio de
gente expulsa da casa onde sempre morou para alimentar a máquina infernal da
especulação imobiliária. Umas vezes há coisas bonitas no meio da tempestade,
claro, outras não é fácil respirar. Para reflectir sobre o que nos rodeia, aqui
e agora, desafiámos dez artistas e demos-lhes temas que nos pareceram
apropriados à sua obra, ou pela familiaridade, ou pelo desafio.
Até aos anos 90 do século passado, o
mercado editorial de banda desenhada em Portugal era preenchido sobretudo pela
publicação de álbuns oriundos do eixo franco-belga, alguma produção nacional
muito associada aos temas históricos e à narrativa de aventuras (herdeira do
registo de publicações que, décadas antes, tiveram sucesso entre os leitores,
como O Mosquito, fundada em
1936 e activa até 1986, ou a Cavaleiro Andante, publicada entre 1952 e 1962) e
trabalhos pontuais que não se inseriam em nenhum dos registos anteriores. Houve
momentos de excepção, como o protagonizado pela revista Visão (entre
Abril de 1975 e Maio de 1976), que
congregou autores cujo discurso procurava pensar a banda desenhada,
experimentar dentro e fora das suas possíveis fronteiras e trabalhar em
direcções não limitadas pelo registo juvenil, mas não foram suficientes para
tornar abrangente e múltipla a percepção do público e as intenções do mercado.
Durante a década de 1990, a
percepção da banda desenhada como uma linguagem destinada às leituras juvenis
ou nostálgicas (quando não como um género, facto tão decorrente do
desconhecimento como da limitação de registos editados) altera-se, ainda que
ligeiramente. O crescimento do mercado editorial, com o consequente aumento de
canais de distribuição e colocação de livros, beneficiou a banda desenhada,
permitindo que livros com registos mais experimentais encontrassem o seu espaço
nas livrarias, agora atentas a outros modos de trabalhar a linguagem da banda
desenhada. Por outro lado, os espaços de divulgação e exposição beneficiaram de
uma evolução no que toca à diversidade, mantendo-se festivais como o da
Amadora, onde a presença da banda desenhada de vocação receptiva mais massiva
sempre marcou presença, acompanhada de exibições pontuais de trabalhos e
autores exteriores ao mainstream franco-belga e norte-americano, mas
surgindo outros, como o Salão Internacional de Banda Desenhada do Porto e o
Salão Lisboa de Ilustração e Banda Desenhada, fundamentais para a criação de um
público que não se limitava aos fãs de banda desenhada, mas que se compunha
igualmente por interessados pelas áreas da literatura, das artes visuais, do
cinema de autor... A recepção da banda desenhada deixou de ser exclusiva dos
fãs das aventuras juvenis e dos nostálgicos de uma suposta Idade de Ouro e
iniciou a sua inscrição no território amplo e transdisciplinar das artes. Sem
excluir o património que motivou edições e exposições antes desta década, sem
abandonar a herança da comunicação de massas que ditou a sua percepção
excluindo qualquer outra abordagem, a banda desenhada abandonou o seu gueto de
fãs e nostálgicos e passou a estar à disposição de um público mais vasto e
necessariamente heterogéneo. Esta abertura foi acompanhada por projectos
editoriais que, no mercado ou nas suas margens, permitiram a edição de autores
que até aí não teriam qualquer hipótese de ver o seu trabalho publicado,
animando movimentos editoriais que passaram por chancelas como a Polvo, a
Pedranocharco ou a Chili Com Carne, bem como edições institucionais associadas
à Bedeteca de Lisboa (com a colecção Lx Comics,
de autores portugueses) ou ao Salão do Porto (com a colecção Quadradinho).
No início
deste século, uma outra conjuntura se formou, alterando o panorama que se
criara nos anos de 1990 e definindo um outro, bem diferente, marcado pela
contenção económica e pela redução do volume de edição. O entusiasmo da década
de 1990 em torno da edição criou uma ilusão que não correspondia, apesar de
todas as melhorias apontadas, à realidade de um mercado editorial pequeno, com
livrarias pouco preparadas para definirem secções de banda desenhada que
ultrapassassem a etiqueta do “infanto-juvenil” e com um espaço limitado na
imprensa para a divulgação e a crítica de livros em geral. Por outro lado,
talvez a ausência de uma preparação sólida para lidar com a gestão editorial e
os condicionalismos do mercado do livro por parte de muitos editores (nem
sempre com a experiência que um mercado como o do livro exige num país cujos
níveis de leitura geral nunca foram famosos) tenha sido responsável por um
entusiasmo que se saldou no estrangulamento do mercado, com o exíguo espaço
disponível para a banda desenhada sufocado por centenas de títulos ao mesmo
tempo.
A tentativa de traçar uma
interpretação histórico-sociológica das últimas décadas no que à edição de
banda desenhada em Portugal diz respeito não tem como passar disso mesmo. Para
além da proximidade cronológica, que em caso algum é positiva para uma fixação
rigorosa dos factos, quanto mais para uma interpretação, a inexistência de
dados fiáveis impede o exercício: o mercado editorial nunca registou os seus
dados em termos gerais e rigorosos (situação que não é exclusiva da banda
desenhada e que continua a dificultar a análise e o trabalho de todos quantos
lidam profissionalmente com a edição, sejam agentes directos ou não), o que nos
deixa unicamente com os números das editoras e com as análises que foram sendo
traçadas, em jeito de balanço, em sites como o da Bedeteca de Lisboa e
em suplementos culturais que têm o hábito de encerrar o ano com uma
retrospectiva que, frequentemente, inclui dados mensuráveis. Relendo essa
documentação, bem como textos fundamentais como presentes nas actas dos
encontros Hoje, a BD, que a Bedeteca de Lisboa realizou em 1996 e 1999, não será um mero exercício de
especulação concluir que o encerramento do Salão do Porto, o decréscimo de
actividade da Bedeteca de Lisboa (que inclui o fim do Salão Lisboa, a suspensão
da colecção Lx Comics e de toda a
actividade editorial e, mais recentemente, o encerramento da sala de
exposições, que albergava, com alguma regularidade, mostras de autores que
maioritariamente não estão editados em Portugal, apesar da consideração que o
seu trabalho tem merecido por parte de críticos, investigadores e leitores de
outras latitudes), o fim de várias editoras e o abrandamento muito
significativo da actividade de outras constituíram os eixos essenciais de uma
conjuntura que, provavelmente com a influência de outros factores difíceis de
identificar a uma distância temporal tão curta, ditaram, na primeira década do
século XXI, o regresso a uma inércia editorial em que a regra voltou a ser o
entretenimento.
A reacção de autores, editores e
outros envolvidos, no entanto, voltou a alterar o cenário entre a primeira e a
segunda década do século. As peculiaridades do mercado editorial e o acesso
cada vez mais democrático às tecnologias da informação e da comunicação
permitiram aos autores portugueses a descoberta de caminhos alternativos ao
processo tradicional de edição. Em alguns casos, os mercados estrangeiros
constituíram um terreno fértil, tanto no plano comercial como no plano do
intercâmbio artístico e da definição de espaços de publicação e divulgação. Os
exemplos de autores que conseguiram encontrar o seu espaço na indústria dos comics
norte-americanos, muitas vezes integrando equipas amplas e com vários trabalhos
a decorrerem em simultâneo, são significativos. Por outro lado, a facilidade de
estabelecer contactos, trocas e parcerias com autores e projectos editoriais e
artísticos de qualquer ponto do mundo abriu vias interessantes de colaboração,
levando vários autores a publicarem os seus trabalhos em países como França,
Espanha, Eslovénia ou Rússia, quer com títulos individuais, quer integrando-se
em antologias internacionais.
Também o
acesso facilitado às tecnologias associadas à edição, sobretudo com o
desenvolvimento da impressão digital e com a vulgarização de empresas que
oferecem serviços que começam na pré-impressão e culminam na entrega do número
de exemplares combinado à porta de casa do autor, autores sem espaço no mercado
tradicional (e sem intenção de adaptarem a sua criação ao registo considerado
“vendável” pelas editoras) editaram o seu próprio trabalho, individualmente ou
em plataformas colectivas. É o caso de artistas como André Lemos, Júcifer, Marco
Mendes, Hetamoé, Lucas Almeida, Tiago Albuquerque ou Sílvia Rodrigues, e de
projectos como a Opuntia Books, Os Gajos da Mula, a Chili Com Carne, o Clube do
Inferno, a Imprensa Canalha ou a Sapata Press, bem como de editoras de média
dimensão e com um trabalho cuidadosamente gerido, como a Kingpin Books, ou
outras que vinham dos anos 90 e souberam adaptar-se à nova realidade, como a
Polvo. Com o avançar deste novo século, agora já com quase duas décadas, estes
caminhos deram os seus frutos e criaram novos espaços na circulação de banda
desenhada em Portugal. Hoje, aquilo a que chamamos mercado já não é um monolito
constituído pelo circuito autor-editora-distribuidora-livraria. Há muitos
autores que se auto-editam, individualmente ou em projectos colectivos, e
muitos projectos editoriais de pequena dimensão que fazem chegar as suas
criações aos leitores em espaços que nasceram do esforço colectivo de autores,
leitores e outros entusiastas do do it yourself, como as feiras de
edição independente (casos da Feira Laica, entretanto descontinuada, da Feira
Morta, da Raia, etc) que acontecem em diversos pontos do país, muitas vezes com
convidados estrangeiros cuja presença em Portugal acaba por resultar em novos
projectos partilhados, novos livros editados em Portugal ou nos países de
origem desses convidados. Editoras que vinham dos anos 90, como a Polvo e a
Chili Com Carne, e novos projectos como a Kingpin Books, ou, numa escala mais
pequena, a El Pep, firmaram-se num espaço que inclui as livrarias (no caso da Kingpin
Books, com uma livraria própria, no centro de Lisboa), mas que passa igualmente
pela presença nos festivais de banda desenhada e, nalguns casos, pelas mesmas
feiras de edição independente onde circulam livros e outras publicações com
tiragens menores, por vezes impressas artesanalmente. O mercado reinventou-se e
parece ter decidido ignorar as dificuldades do mainstream, criando os
seus próprios caminhos e abrindo espaços onde eles não existiam. A vitalidade
criativa e editorial de projectos como estes e outros tem assegurado diálogos
constantes e frutuosos entre artistas, e entre estes e o público minoritário
que os conhece, acabando por alcançar outros públicos e confirmando que a
auto-edição, a edição em pequena escala e a atenção aos circuitos não-generalistas
que há uns anos se apontava como futuro possível para a edição de banda
desenhada em Portugal é, hoje, o seu presente.
Longe de
caravelas e melancolias preparadas para exportação imediata, os barcos onde
navegamos hoje são instáveis. E navegamos todos, os que nunca pisaram um
convés, os que andam entre Portugal e o estrangeiro em rotas aéreas low-cost
para ganhar a vida, mas também os que tentam chegar à Europa arriscando a vida
para fugir da guerra, porque essa ideia de uma nação com as suas fronteiras há
muito que se esboroou, para o bem e para o mal. Vivemos aqui, alguns somos
daqui desde sempre, outros passámos a ser, porque é aqui que estamos. E aqui é
em Portugal, mas não deixa de ser nesse não-lugar criado pela internet, pela
globalização, pelo capitalismo, e também pela vontade de conhecer os outros,
pela necessidade de circular, pela ânsia de abrir mundos sem ser à força. Temos
bom tempo e temos canções, temos corrupção e dificuldades económicas, temos
turistas e muitas interrogações. E temos, seguramente, autores com vontade de
pensar nisto tudo sem a ilusão de um passado glorificado mas com os pés bem
fincados no que somos, fomos e vamos sendo.
Sem comentários:
Enviar um comentário