sexta-feira, 10 de abril de 2020

O absurdo dos dias normais...

O Novo Milénio trouxe ao Ocidente a descoberta de todo um historial ainda por contar do Gekiga - termo que significa "imagens dramáticas" opondo-se ao termo "Mangá" (imagens tolas), no fim de contas trata-se por analogia de "Romance Gráfico". Aparecem quase todos os dias edições nos EUA e na Europa a recuperar velhos mestres e autores simbólicos, até em Portugal tivemos inesperadamente dois livros do Shigeru Mizuki (1922-2015) pela Devir, que aconselho vivamente. Não só esta recuperação vive de edições, há também eventos e exposições como aconteceu este ano no Festival de Angoulême em que foi mostrada uma bela retrospectiva do importante Yoshiharu Tsuge.

A inglesa Breakdown Press é daquelas editoras pequenas que tem lançado "clássicos desconhecidos" do Japão, com um cuidado extremo nos objectos editoriais, tendo publicado no ano passado The Pits of Hell de Ebisu Yoshikazu - livro culto no angora japonês, editado originalmente em 1981. São nove histórias, produzidas entre 1974 e 1981, que são perfeitamente selvagens, brutas, sujas, feias e violentas sobre o inferno que é o dia-a-dia na escola, escritório ou em casa - a violência doméstica também é contemplada - ou seja, todas as maleitas criadas pela sociedade industrial capitalista, que borregos como João Miguel Tavares estão desejosos que regressem "à normalidade" no seu esplendor. É verdade que os argumentos são dados a excessos e pesadelos mas o sentimento de que algumas das situações poderiam acontecer mesmo está no fio da navalha.

O estilo gráfico de Ebisu é pioneiro e insere-se no movimento "heta-uma" ("feio mas bom") que se tornou o ADN da mítica revista Garo da década de 70 e 80, e muito para além disso se pensarmos na segunda geração de autores praticantes do estilo como Yusaku Hanakuma, do celebrado Tokyo Zombie (1999), ou ainda mais próximo de nós, no tempo e território, a Hetamoé. De uma forma muito primária pode-se dizer que o que temos aqui é ao equivalente aos norte-americanos Rory Hayes (1949-1983) ou Mike Diana, especialmente a violência física lembra Diana - embora a comparação teria de ser invertida cronologicamente. Para quem já não tem cu a ouvir empresários a falarem sobre a Economia, eis a solução.

Quem são os autores clássicos de Itália? Quem responder Hugo Pratt é porque não conhece Guido Buzzelli, o primeiro verdadeiro artista na BD mundial - e, epá!, publicado em Portugal: Zil Zelub (Presença; 1973). Quem responde Manara é porque não conhece Pazienza!

Andrea Pazienza (1956-88) é uma instituição em Itália, o gajo da BD mais respeitado e adorado de sempre. Talvez por isso que a capa d'Os Últimos Dias de Pompeo (Veneta; 2015) tenha um ar bizantino, em volta de um artista junkie, Pompeo, alter-ego de Pazienza, que faleceu pelo uso de heroína. Uma auto-ironia profética? Porque não? La Pazienza ha un limite, Pazienza no!

Este álbum é o seu diário confessional e testamento artístico - embora a BD incompleta Astarte, seja considerado por outros. Aqui o verniz estalado é assumido, as folhas onde são desenhadas vários desenhos, algumas vinhetas e sequências são mesmo papeis de rascunho ou do que estivesse à mão de semear, enquanto na outra dava mais um caldo. Só com drogas é que se suporta esta realidade de merda, e Pompeo é o poeta de serviço para mostrar a verdade e a mentira desta afirmação, usando armas do pós-modernismo (o grafismo é muito 80s sem dúvida), as páginas são "slices of life" sobre arranjar doses, injecções bem ou mal paridas, estar lá por detrás do espelho de Alice e infelizmente regressar à terra. Não esperem Harvey Pekar ou outras (auto)biografias bem comportadas, isto é um ensaio para uma "arte total", falhada e triste.

A obra de Pazienza nunca foi publicada em Portugal - podem agradecer aos editores de BD que nos deram tanta ignorância durante todas estas décadas de democracia. Em português há BDs na amadíssima Animal - incluíndo Astarte - e este livro que já agora conseguiu o impossível, traduzir com rigor o texto de Pazienza, que é italiano, iá, e também mil dialectos "daquela bota", jogos palavrosos e invenções linguísticas do autor. Parabéns!

Se o livro de Ebisu deve ser fácil adquirir pela editora, o de Pazienza vindo do Brasil terá preços proibitivos - e meninos, nada de usar a Amazon que é má para todos! Alternativas, ou ler em Italiano, ou esperar por 2021 porque estão previstas uma edição francesa pela Revival e outra em castelhano pela Fulgencio Pimentel, creio.

O último livro de Gabrielle Bell intitulado Inappropriate (Uncivilized) saído este ano, é também uma compilação de BDs curtas. Não conhecendo muito bem o seu trabalho, diria que é daquelas autoras que vai reunindo esse material vindo de zines, "comic-books" (como o seu Lucky), antologias de referência (Mome, Kramers Ergot) e muita 'net por aí.

Bell possui tanta displicência como humor - diria até "humor britânico", uma vez que o pai das autora era inglês, após o divórcio, a mãe norte-americana levou-a, com dois anos, para os EUA. Na primeira característica topa-se logo pela forma como as suas BDs não tem um limite de vinhetas e páginas, parece que a autora tem um à vontade narrativo para contar desaventuras do dia-a-dia com elementos surrealistas sem que isso perturbe a normalidade do universo.  Quando decide parar, pára, que se lixe que depois em livro fique com páginas e meia de BD e o resto a branco. Estranhamente ela até tem uma disciplina monótona (mas que que não cansa) de fazer tiras de duas vinhetas e três tiras por página. No entanto como disse, quando tem de parar para fechar uma história ela pára e acabou-se. Talvez procure um final durante a produção até que o encontra sem pensar em consequências de formatos editoriais. com este processo acerta sempre e fazer das narrativas verdadeiros contos "clássicos" (princípio, meio e fim) e não aquele flutuar constante das pequenas autobiografias.

O humor dela é subtil - daí a referência ao britânico - não nos (a)traí para facilidades de "punch-lines", é maneirinho, evidencia o ridículo da sociedade ocidental sem o querer modificar, se não fosse assim o que poderia ela contar? Tem algo de inocente e infantil - lembra-me a Jucifer - contrabalançado pelo mundano e aflitivo. Senti nela uma energia que tinha nos tempos do Eightball de Daniel Clowes, aquela aura norte-americana que surpreende sempre pela irreverência da juventude e a observação sagaz dos nossos tiques civilizacionais. Espero que ela não se estrague como o gajo e que continue a bater no ceguinho.

Qualquer livraria de BD que seja de importação norte-americana deveria ter este livro ou facilmente o consegue por encomenda - comprei o meu exemplar na BdMania (era o que se destacava no meio do lixo habitual) e foi mesmo a tempo antes do "co(n)vid(a-a-casa)-19", perfeito para escrever sobre ele no fim de semana comemorativo do porco nazareno mais fixe de sempre! (o fim-de-semana, não o porco, dah!)

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