terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Relatório 2023 sobre zines e edição independente

Comecemos por um pequeno acto de coragem, uma singela mas acutilante BD digital de Tiago da Bernarda com o seu habitual Gato Mariano e Bruninho (és o maior!) publicado seu instagram sobre a guerra em Gaza - aliás, um outro Bruno até explica que o desenho ainda é arma contra a estupidez e controlo digital - uma vez que a falta de coragem grassa pelo mundo, com medo de perder a sua continha de rede social.




Os últimos anos do mercado de BD em Portugal tem sido um avalanche de mediocridade porque a BD - ops! perdão, a "novela gráfica" - está na moda. Lá fora o mesmo acontece, claro mas há muito mais oferta (e melhor), até porque foi uma construção de várias forças e de décadas de trabalho que permitiu que agora a BD seja omnipresente em qualquer "nicho de mercado" e que tenha oferta para "todos os gostos".

Cá não foi assim nem os resultados serão os mesmo. As editoras profissionais generalistas são absolutamente ignorantes nesta área, publicam as cenouras que os agentes literários internacionais lhes abanam: adaptações literárias em primeiro plano, seguida de biografias ou adaptações históricas, e por fim, "Manga" da sexta divisão e feito por ocidentais medíocres... aliás, tudo o que foi referido, tirando uma excepção ao outra, é perfeitamente medíocre! De realçar, apesar de ser um livro menor na sua carreira, O Segredo da Força Sobre-Humana de Alison Bechdel, graficamente pouco atraente e com algumas piadas parvinhas que estragam o peso autobiográfico da obra, não deixa de ser interessante ver a Relógio D'Água a sair do seu próprio catálogo imundo de adaptações literárias que criou ao começar a publicar "novelas gráficas".

Os editores especializados, tem conhecimento e "savoir-faire" mas o seu mau-gosto e pensamento reacionário, fez que ignorassem artistas que rotulavam de "alternativos" - ou pior ainda: basta ser "artista", que é palavra feia no meio bedófilo! - e que ficaram grandes nos últimos anos, ou seja, agora custam mais caro de quando eram "alternativos" e menos acessíveis como pessoas para criar relações entre autor e editor. É óbvio que se for a primeira vez que se publica um livro da Julie Doucet ou do Adrian Tomine, custará vendê-los ao público português que não os conhece - isto deveria estar entre aspas, pois há muita gente que conhece estes autores porque compram edições noutras línguas! Será mais fácil editar um Tardi - e foi das poucas coisas de jeito que saíram no ano passado, falo de Elise e os novos Partisans, com Dominique Grange, pela Ala dos Livros - do que o Yvan Alagbé. Isto apesar de todos os autores aqui referidos terem passado por Portugal, em presença física e com exposições de grandes festivais de BD... Também é fácil à Devir publicar Junji Ito, Naoki Urasawa ou Taiyo Matsumoto, quando até os putos da província tem t-shirts deles ou já viram os Animes na 'net, do que publicar os irmãos Tsuge. Gostamos destes autores, claro, mas falta audácia.

É neste caldo de inconsistência que se circula, por cá. Mas há mais inconsistências, mesmo no meio "alternativo"...


Internacional

Chili Com Carne esteve no Festival de Angoulême, Autobán (A Corunha) e Fexti (Badajoz). A Magma Bruta no Graf de Barcelona e a Oficina Arara no Novo Doba (Belgrado). Parece que todos  se baldaram ao Crack (Roma), talvez porque vieram de lá doentes em 2022?

Franciso Sousa Lobo participou na revista finlandesa Kuti e na letã Kuš!, nesta última também entrou o Ivo Puiupo. Na colecção mini kuš! dessa mesma editora, saíram os livrinhos de Ana Margarida Matos e João Fazenda. Pela Eslovénia, comemorando os 30 anos da revista Stripburger, participaram Bruno Borges e Filipe Abranches na antologia Dirty Thirty. Matos e Sofia Neto entraram no fanzine espanhol Soñario e Ana Maçã no dreamzine #2, ambos do projecto ElMonstruoDeColoresNoTieneBocaAmanda Baeza voltou em forma internacional estando na antologia suiça «autre chose» com a "creme de la creme" da BD mundial e ainda no fanzine Amorcito da Galiza. Foi de lá também que veio o álbum Zeca Afonso – A balada do desterro, com texto da galega Teresa Moure e desenhos da portuguesa Maria João Worm. O livro foi publicado pela Acentral Folque, da Galiza, e a Tradisom, de Portugal, assim sim vale a pena fazer projectos internacionais. AngueSângue de Daniel Lima teve edição em português pela Chili Com Carne e em inglês pela Kuš!. Lima também viu a sua página do Le Monde Diplomatique - edição alemã - de 2018 compilada em Die große Salatschüssel des Lebens, pela Reprodukt, ou seja outra antologia "creme de la creme", diga-se de passagem! Borges continua com a Abolição do Trabalho, de Bob Black, a conquistar mundo, desta vez nos EUA pela Floating World

Nesta mesma editora que começou publicar a obra do primeiro grande artista de BD, o italiano Guido Buzzelli (1927-92) e Domingos Isabelinho entregou um texto introdutório para o primeiro volume. Não foi o único português a fazer trabalho de referência, Leonardo de Sá que investigou a passagem por Portugal do autor francês de BD "collabo" André Daix (1901-76) no livro Dans l’Ombre du Professeur Nimbus por Antoine Sausverd, pela P.L.G.


Visita ao zoo

Com programações cada vez mais fracas, os festivais de BD não tem trazido artistas estrangeiros que possa referir aqui, só o habitual putedo bedófilo, ficando as excepções (que confirmam a regra) para as espanholas Anabel Colazo (em Beja) e Mayte Alvarado (Amadora). Tem sido a Tinta nos Nervos a arriscar, como aliás, já é uma verdade há 3 anos, tendo trazido para exposições o finlandês Marko Turunen e o bom gringo Christopher Sperandio. De referir a passagem do editor da Floating World, Jason Levian também por lá, para apresentar o livro do Borges acima referido.

De resto, os nómadas em Lisboa tornou-se num fenómeno que não pode ser ignorado. Vários são os autores que passam por cá, ora ficam uns tempitos em residências artísticas, por exemplo, como o suíço Yves Hänggi que fez duas exposições em Lisboa, ora assentam os arraias e até começam por publicar livros como a irlandesa Rayne Booth ou o turco Utku Yavaşça que está a desenhar uma divertida BD num fanzine de "expats" (é assim que se escreve?) chamado Ble$$ed. Alguns já cá estão cá há anos e são gajos grandes como o francês Hervé di Rosa que teve uma exposição no MAAT com uma confusa data de final de exposição. O romeno Nicolae Negura, também residente há anos por Lisboa, participou no projecto Histórias de 89 no obscuro Instituto Cultural Romeno em Lisboa. E não esquecendo ainda o cromo norte-americano Flynn Kinney que meteu cenas tugas nos "melhores do ano" do fanzine Bubbles. Obrigado!


Eventos

Acontecimentos houve muitos, o habitual mercado de edições independentes que cada vez são mais feiras de cartazes - e infelizmente o antídoto que era o M.A.L. não sobreviveu para 2023. Trata-se de uma verdadeira gentrificação das publicações. Quando este tipo de eventos apareceu em Portugal, chamavam-se "Feiras de Fanzines" nos finais dos anos 90, ao longo da primeira década do novo milénio, devido à democratização dos meios de produção ligados à impressão, acrescentou-se "edição independente" de forma a entrar livros de autor, livros de artista, micro-edições e livros com distribuição restrita. Nos últimos 10 anos parece que os eventos de "edição independente" são uma feira de Carcavelos com imagens chatas e redundantes, onde pessoas (clientes) vão comprar serigrafias e afins para decorar os seus A.L. ou salas amarelas ou cozinhas azuis, sei lá... Houve a Raia, Parangona (Lisboa), Alegria, Perímetro (Porto) e Autónoma (duas edições em Cacilhas no abandonado Ponto de Encontro, justamente onde apareceu das primeiras "Feiras de Fanzines"!). Em Alpiarça fez-se um simpático Festival de BD e Fanzines. A Chili participou em mais umas feiras de outros temas: Feia (Música), Livro Anarquista, Livro de Arte (em Coimbra, imaginem isso!), Festival Rescaldo e Matiné Fetra. De realçar, pela negativa e como primeiras manifestações de "zinewashing" a "rip-off" Stolen Goods em que na sua própria sede, a organização pedia 75 euros por mesa aos seus participantes -  tendo uma série de estrangeiros caído na esparrela (e alguns portugueses); e a Direita monga cabotina da Junta de Freguesia de Arroios organizou a segunda FLIFA em que participaram VIPS de merda e um bosta de um facho.

Continuou a instalação Story Tellers no Parque Silva Porto (Benfica, Lisboa) com quatro conteúdos diferentes tal como as estações do ano e apareceu o ciclo Ilustraboom WC/BD na antiga casa de banho pública do Jardim Camilo Castelo Branco (Lisboa) com exposições mensais, das quais destacam-se as da Joana Mosi e Zé Burnay por trabalharam sobre o espaço e não terem colocado apenas pranchas nas paredes. Em Óbidos continua a mostra anual Flexágono, no festival In-Fólio, organizado por Pedro Moura. Em Torres Novas, na Biblioteca Municipal, fez-me uma exposição sobre os 50 anos do fanzine Impulso, seja lá o que isso tenha sido. Na Biblioteca Nacional, ainda a recuperar os atrasos do covid, comemora-se os 100 anos do ABCzinho (1921). Mais importante é a recuperação de trabalhos de Artur Varela (1937-2017) numa exposição na ZDB. Houve exposições da Rosa Baptista (aka Rroze Selavy) para inaugurar a Casa do Comum no Bairro Alto (que inclui livraria e onde foram feitas as feiras anarquista e Parangona) e este escriba teve uma expo-guerrilha em Guimarães, Ganza Metal, graças à malta da Magma Bruta, onde foram recuperadas peças do Zalão de Danda Besenhada (2000) e do Mistério da Cultura (2007).

O mais importante de 2023 e onde o futuro se constrói foi Memórias Artificiais do Rei da BD portuguesa, Rudolfo, que mostrou originais de BD, tocou música e mostrou o seu videojogo (que mete BD) num armazém no Porto, em Junho, um dia antes da Feira da Alegria. Que alguém tenha olhos na majestade!


Publicações finalmente!

Não! Cada vez existe menos fanzines ou zines, não sei se é da crise que se vive, individualismo do neo-liberalismo que se vive ou apenas falta de tempo mas quase não se encontram projectos e artistas novos. Quase deixa de fazer sentido escrever este relatório. Só se justifica porque há sempre projectos independentes com qualidade para relembrar os mais incautos. Este ano a maior surpresa foi o caso da Associação de Estudantes da Faculdade de Belas-Artes do Porto que fizeram o Coisas feias em Belas Artes, um fanzine em formato A5 catita com montes de BDs politizadas sobre a degradação do ensino superior em Portugal mas também sobre a tomada de consciência de como a cultura e o associativismo são importantes – prova dada pela qualidade da organização da Associação ao produzir a Feira da Alegria! Destaque especial para o autor Pedro Evangelho.

Na continuidade de projectos eis que houve mais volumes do Bomba Zine, O Filme da Minha Vida, Bancar0ta, Fosso (José Feitor), Mesinha de Cabeceira, Olho do cu, Opuntia Books (desenho) e Umbra. A Chili Com Carne, Magma Bruta e Sendai continuam de boa saúde a publicar o melhor da BD "artística".

Regressou o divertido fanzine É fartar vilanagem, tal como os artistas João Carola, André Coelho, Dois Vês e Rafael Gouveia voltaram às lides da auto-edição. O mesmo para o colectivo MASSACRE que logo no início do ano com um livro de algum investimento, falo do The End of Madoka Machina de André Pereira.

Os destaques vão para os projectos fora de comum, tudo da Chili e associados, modéstia à parte: Where's the ground? da banda Rock Unsafe Space Garden, pela Discos de Platão, em que a música,  a BD (de Alexandra Saldanha) e os espetáculos ao vivo parecem unos num caleidoscópio psicadélico. O jornal Carne para Canhão da Chili, só com um número ainda, que pretende chegar a públicos mais alargados por ser gratuito, inspirado noutros projectos passados como o finlandês Kuti. E o grande Vale dos Vencidos, obra de 11 anos de trabalho de José Smith Vargas, um "tour de force", com alguns laivos inéditos de composição editorial do livro mas sobretudo um marco histórico na BD portuguesa, pela complexidade narrativa e a temática das destruições das cidades que tanto nos aflige.


Referências

Depois das palhaçadas d'A SHeITa do ano passado, que apesar disso, ainda são úteis q.b., para pelo menos cartografar a BD portuguesa deste milénio, 2023 foi deserto outra vez nesta área. Apareceu uma simples brochura de Bibliografia de Banda Desenhada de Ficção especulativa Portuguesa por Marco Fraga da Silva, editada pela Associação Tentáculo. A Tinta da China para redimir dos desastres ecológicos do passado (Melo & su muchacho) reeditou os Cartoons de João Abel Manta. A Arte do Autor publicou mais uma BD sobre a vida de Edgar P. Jacobs, numa eterna bedófilia feita por uns gajos franco-belgas que nobody gives a shit! A revista sobre ilustração Aguça sacou o número três e apesar de ainda não ter visto nem lido, só os nomes aguçam o apetite: Amanda Baeza, João Sobral, Mariana Pita, Sara Boiça e Sofia Neto. E a mais "boring art magazine ever" Umbigo teve uma frikice qualquer que metia o acervo da Bedeteca Nacional [sic] da Amadora a ser discutido pelo Tiago Baptista num artigo. O que vale é que o Baptista é sólido...

Vencedor do ano, o blogue My Nation Underground do nosso associado "Erradiador" que todos os dias coloca um "post" (ou mais que um) de um fanzine da sua colecção - essencialmente de BD - criando um puzle e compendio deste tipo de publicações. Quem for de ano a ano poderá ter uma imagem mais nítida do que foi ou é a cena dos zines (e edição independente) em Portugal. Como diziam os outros: clap clap clap!


Tristezas não pagam dívidas

2023 foi um retrocesso civilizacional, não só pelas guerras, por exemplo, mas também pelo tratamento xenófobo que a Câmara Municipal da Amadora infligiu à artista luso-chilena Amanda Baeza, que não mereceu celebrar o 25 de Abril com a instituição. Tal mereceu boicote de um certo público ao Festival de BD, embora, não havia nada para esse público ir lá ver - tirando a exposição do Smith Vargas, claro.

De referir ainda a triste morte aos 60 anos do norte-americano Joe Matt, um caso in extremis de como o uso da autobiografia pode secar a vida de um artista. Matt era tão viciado em pornografia, tal como era tão pornográfico na forma como deitava para fora a sua vida nas BDs autobiográficas, sob o título de Peepshow. O seu falecimento deveu-se à falta de dinheiro para tratar da sua saúde.

Quem não é anarquista que tire as conclusões que quiser sobre estes dois casos...

2 comentários:

  1. Sempre relevante este relatório anual.
    Subscrevo e confirmo enquanto leitor a desolação que é uma prateleira de livraria generalista e até mesmo uma livraria especializada - não por falta de livros e títulos, mais pela mediocridade homogénea das tais editoras do costume (das kingpins, gfloys, devirs, polvos, seitas [esta é cringe total] às levoirs, alas do livro e afins) que só lançam lixo genérico e entopem as prateleiras de palha para burros. Muitos livros bem produzidos com acabamentos de luxo, mérito das gráficas claro, mas completamente desinteressantes e condenados à reciclagem. Nem vou falar das traduções, assassinam clássicos como o GORAŽDE do Sacco...
    Que raio de liberdades acham que merecem ter, estes editores de esquina escura, para tratarem assim a obra de alguém como se vivêssemos na idade das trevas e não tivéssemos acesso ao original para comparar?
    Depois afirmam por aí à boca que é o mercado que não cresce como se fossem magnatas peritos em BD. Se o mainstream da banda desenhada é uma merda e não se distingue uma porcaria da outra, felizmente que temos o meio artístico da banda desenhada independente onde o que não falta é diversidade e variedade. Valha-nos isso.

    Era só isto.




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  2. muito obrigado pelas palavras simpáticas!
    é algo para ir fazendo, ao sabor da vontade e da disponibilidade de cada momento. Andava a adiar há uns anos, indeciso sobre o que fazer e como. Quando finalmente comecei, decidi que a única forma de criar alguma continuidade era manter a disciplina diária... às vezes, sai melhor; outras nem tanto...
    De todo o modo, vai-se sistematizando e disponibilizando alguma informação e imagens que não se encontram em qualquer outro canto da vasta (mas muito volátil) internet...
    No que toca ao Relatório 2023 - muitos parabéns - está excelente!

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