CHEGOU a antologia š! número especial dedicado à BD portuguesa e ao "Desassossego"!!!
A Chili Com Carne deu apoio na selecção dos artistas a incluir neste volume e numa discussão com a redacção da Letónia chegou-se à conclusão que Portugal tem a mania de dizer que é um "país de poetas". Se for verdade, ao menos que se actualize ao século XXI e que eles sejam "visuais"! Daí a razão de explorar explorar o "desassossego", um dos maiores marcos literários do século XX do "nosso" Fernando Pessoa, para definir as tensões gráficas e narrativas angulares que unem esta lista de artistas ímpares: Amanda Baeza, André Lemos, André Pereira, Bruno Borges, Cátia Serrão, Daniel Lima (imagem), Daniel Lopes, Filipe Abranches, Francisco Sousa Lobo, Joana Estrela, João Fazenda, Marta Monteiro, Milena Baeza, Paulo Monteiro, Pedro Burgos, Rafael Gouveia e Tiago Manuel.
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texto (original e em português) de Marcos Farrajota para este número:
Tudo o que fazemos, na
arte ou na vida, é a cópia imperfeita do que pensámos em fazer*.
Os meus
olhos queimam de tanto tempo que passo em frente ao monitor para escrever algo
de original sobre a banda desenhada portuguesa. Desta Arte só podemos dizer que
ela será boa para ti se tu fores boa para ela. Ainda assim, ela é uma tontura,
uma pechincha, um suplício, um esforço inútil sem causas nem consequências, sem
glória ou recompensa. Em Portugal e noutras partes do mundo, fazer BD é
simplesmente um acto isolado, sem consciência de classe e sem localização de
parentescos e aliados - que safodam as redes sociais, elas não ajudam em nada
para quem se mete numa mesa a tentar equilibrar imagens e textos.
Na vida de hoje, o
mundo só pertence aos estúpidos, aos insensíveis e aos agitados. O direito de
viver e a triunfar conquista-se hoje quase pelos mesmos processos por que se
conquista o internamento num manicómio: a incapacidade de pensar, a amoralidade,
e a hiperexcitação*.
Perguntei a António Kiala** opinião. Ele responde-me
com a sua habitual fúria: “o que distingue a BD portuguesa das outras é a
História do seu próprio país que sempre se acomodou ao esclavagismo e colonialismo
e que devido à periferia europeia não teve problemas de sustentar um fascismo
“light” (tudo é leve no nosso país) durante 50 anos. Esse clima católico e
bem-comportado (senão iam para fogueira da Inquisição) tornou o povo analfabeto
e dócil num húmus nauseabundo o que não impede que o génio sobressaia em alguns
autores!” Tem de ser assim, senão a palavra “génio” nem existiria. Poucos mas
bons! De baixa estatura também. E morenos, embora essa pureza genética dê
vontade de rir – só os ingénuos e idiotas é que acreditam em eugenias e raças puras
de cavalos. Por acaso, só na selecção de autores feitos neste número do Kuš! muitos têm mais que um metro e setenta
e alguns até são loiros. Podiam passar por letões ou um eslavo menos deslavado.
Em comum são autores que se dissociam obviamente do cliché da BD masculina,
heterossexual e caucasiana – embora pouco importa a cor de pele ou a opção
sexual quando não se tem talento ou vontade de dizer o que lhe vai na Alma.
Porque se sou do
tamanho do que vejo / E não do tamanho da minha altura (Alberto Caeiro)*
Pediram-me
para escrever sobre a BD portuguesa. Um exercício inútil. Que adianta escrever
aqui nomes de autores, publicações ou obras se nem os portugueses os conhecem
ou se dignam a reconhecer? (incluindo as gentes da cena da BD que são uns
merdas ignorantes) Para quê o “name-dropping” se não se pode encontrar os
trabalhos de forma acessível? Se vierem a uma livraria portuguesa estranhamente
até poderão encontrar duas obras reeditadas dos anos 70 - Wanya, de Augusto Mota e Nelson Dias e Eternus 9 de Vitor Mesquita - mas irão se rir da naivitée da época. Dos anos 80 nem há
livros para falar. Só a partir dos anos 90 que até podem encontrar livros de BD
portuguesa no estrangeiro como História
de Lisboa de A.H. Oliveira Marques e Filipe
Abranches e Mr. Burroughts de
David Soares e Pedro Nora, ambos em francês. Neste milénio até há mais livros
editados, alguns 14 anos depois da sua publicação portuguesa como os do Pedro Burgos e o do Pedro Brito com o João Fazenda em França, Polónia e
Itália.
Por cá, o mercado da BD popular foi desaparecendo ao longo
do século XX mas os seus autores sempre estiveram bem alinhados aos sabores dos
tempos: dos grandes mestres do desenho realista e aventura (Victor Péon,
Fernando Bento) aos fabricantes dos “grandes narizes” (Carlos Roque, António
Fernandes Silva), dos que esmiuçam os políticos na imprensa (Nuno Saraiva) até
aos que mostram as cuecas dos super-heróis no seu mercado (Jorge Coelho), houve
sempre um pouco de tudo em doses homeopáticas e sempre com qualidade técnica
irrepreensível. Mas não é destes que interessa escrever nem dos seus problemas
profissionais – tal pode ser lido em Quadradinhos: Looks on Portuguese Comics, catálogo-antologia editada no âmbito do
Festival de Treviso 2014.
Viver não vale a pena.
Só olhar é que vale a pena. Poder olhar sem viver realizaria a felicidade, mas
é impossível, como tudo quanto costuma ser o que sonhamos. O êxtase que não
incluísse a vida!*
Os movimentos da BD portuguesa não são de fluxo em
progresso mas de interrupções contínuas que não oferecem passado nem futuro.
Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905) deu o verdadeiro arranque editando jornais
e álbuns humorísticos que deveriam ser modelo para todos e até fez o primeiro
acto de autobiografia com No Lazareto de
Lisboa (1881). Não teve seguimento... Carlos Botelho (1899-1982) será excepção à regra da
História com o seu misto de crónica, autobiografia, jornalismo e sátira, sabe-se
lá como resistiu entre 1928 e 1950 a fazer uma página semanal no jornal Sempre Fixe! O Estado Novo tinha sido instalado
dois anos antes embora seja verdade que algumas vezes a Censura deixou passar
desenhos seus em que Mussolini e Hitler seminus eram expulsos do Paraíso – já
agora, o ditador italiano fazia de “Eva” e é nomeada de “Mussolina”. Os
especialistas internacionais da BD não pensam nestes dois autores como
património mundial, Pinheiro ou Botelho não tiveram impacto internacional (nem
poderiam com um país fechado ao mundo) por isso: continuem a brincar com as
pilinhas da Krazy Kat (apesar de ser
uma gata) e do Calvo!
Logo após a revolução de 25 de Abril de 1974 já havia Visão (revista entre 1975-76) aberta ao
psicadelismo e à anti-autoridade. O anarquismo era “light” (Kiala dixit) mais a dar para o maoísmo resminga
e não foram longe nem parecem ter tido consequências… É preciso esperar pelo
pós-modernismo da revista Lx Comics (1990-91)
para se ver a amplitude que a BD poderia ter mas ninguém percebeu aquilo.
Depois veio a instituição pública da Bedeteca de Lisboa para conduzir a geração
“indie” dos anos 90 para um “boom” mediático e editorial em que de repente,
tudo parecia ser possível. Esse trabalho destes tempos foi decaindo lentamente
a partir de 2002 até ao esquecimento de hoje, embora a biblioteca continue num
edifício amarelo e com o maior acervo de BD nacional para consulta e empréstimo
domiciliário. Desde 2005 que a cena portuguesa em geral vive um vazio existencial
mas que não tem durado mais tempo do que os intervalos entre as outras
referências históricas aqui indicadas neste parágrafo.
Este vazio nem deveria ser problemático porque há muito que vivemos
sem Deus ou qualquer outro tipo de centro. É impossível agrupar estes artistas que
entram neste livro a qualquer movimento até porque há aqui idades e percursos
muito diferentes, isto ao ponto de apesar os conhecer quase todos, nem sabia
que a Marta Monteiro fazia BD – foi o David Schilter que “descobriu” esse facto.
Tal como foi ele que me indicou a Joana Estrela
(tudo bem, ela andava pelos países bálticos) mas o mais importante foi que o Kuš! publicou o primeiro livro da Amanda Baeza.
Chegamos ao ponto deste mistério total que é porque raios a Kuš! está recheada de dissidentes? Existe
outra palavra para eles? É certo que alguns até se movem em colectivos
organizados como a Chili Com Carne (Daniel
Lopes, André Lemos, Francisco Sousa Lobo, Rafael Gouveia), Oficina Arara (Bruno Borges) ou Clube do Inferno (André Pereira) – esse fenómeno
incompreensível para os portugueses: a colectividade – mas a maior parte são
“lobos solitários” como a Cátia Serrão
e o Daniel Lima. Há “lobos” cheios
de gente como o Tiago Manuel que
deverá ultrapassar “as pessoas do Fernando” com o seu projecto de 25
heterónimos – a sua belga Marriette Tosel foi seleccionada pela Society of
Illustrators no ano passado! E há o Paulo
Monteiro que apesar da sua faceta institucional à frente da Bedeteca de
Beja e respectivo Festival de BD, tem poesia pelos poros que afecta editores
estrangeiros – é o autor português com mais edições estrangeiras do seu único
livro! Estas internacionalizações são um fenómeno recente, durante muito tempo Portugal
não participava na festa do intercâmbio. Sentia-se bem a comer gordura animal e
batatas vindas da aldeia, era preciso que “viessem cá” para perceber o que se
passava. O génio cria para a gaveta e é preciso que o chateiem!
Eles ficam comovidos com os desafios, claro. Afinal, o
isolamento que sofrem é digno de um Arthur Dent*** que durante anos foi abandonado
sozinho num planeta qualquer no Universo. As respostas sobre tudo isto da BD
portuguesa que não consegui escrever na verdade estão nas sábias palavras que
Dent pronunciou ao aparecer-lhe o primeiro ser inteligente, Bowerick Wowbagger the
Infinitely Prolonged, nesse exílio e faço questão de citá-las: Whh...? Bu...hu...uh ... Ru...ra...wah...who?
*Frases do Livro do
Desassossego, de Fernando Pessoa
**Prof. Universitário angolano de Sociologia que reside
entre Lisboa e Belfast, um dos fundadores do zine Mesinha de Cabeceira e “think tank” na cena alternativa nos anos
90.
***Atenção, estamos no domínio d’O Guia Galáctico do Pendura de Douglas Adams!
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