Não há regras sem excepções
Tal como este país se queixa permanentemente de atrasos sobre a Arte, também acho que haja um exagero tipicamente latino relativamente a essas queixas, especialmente quando aparecem “coisas” como os Opuntia Books, perfeitamente sintonizados com a cultura contemporânea.
Desde Janeiro de 2006 que o ilustrador André Lemos começou a lançar edições que publicam desenhos seus ou de outros autores. Essas edições monográficas são feitas de tiragens limitadas entre os 50 a 100 exemplares – sem reedições, especulando a raridade dos mesmos. Cada exemplar é numerado com um carimbo e muitas vezes também são assinados pelo autor. O formato é o A5 e as capas são impressas em cartolina, muitas vezes em serigrafia. Por fim, as edições são embaladas em sacos plásticos para proteger algumas surpresas que costumam saltar do interior - folhas volantes, fotografias... Falta dizer que a impressão é feita a fotocópia a lazer garantido uma qualidade de reprodução, simulacro de uma impressão profissional.
Dos títulos até agora editados, dois são de autoria de Lemos: Even gravediggers read Playboy (Jan’06) e Family Portraits (Mar’07). No primeiro caso, é reproduzido uma selecção de desenhos do autor, no segundo, é uma série temática - um desfile de famílias toscas. Não porque elas sejam toscas per se mas porque a maioria das criações de Lemos tem um ar bruto, resultado do tratamento gráfico condimentado com traços musculados e negros; e, os desenhos são acompanhados por frases irónicas. Aliás, basta constatar pelo primeiro título a capacidade de Lemos para criar frases idiossincrásicas. A primeira edição é impressa sobre papel azul de 25 linhas – um pormenor sádico da burocracia portuguesa – e o segundo título inclui uma fotografia “vintage”. O primeiro título encontra-se esgotado, fechando desde já o seu ciclo de vida pública – embora quem o quiser consultar poderá encontrar um exemplar na Bedeteca de Lisboa, provavelmente a única instituição pública com um bom acervo de fanzines.
E por falar em fanzines, creio que tem havido confusão em designar os Opuntias como fanzines. Geralmente têm sido divulgados como tal (incluiu-me na lista de culpados) porque em parte em Portugal (agora sim, uma queixa) há alguma falta de denominações para alguns objectos urbanos. O próprio “fanzine” tem sido divulgado para qualquer edição com as seguintes características formais: publicações amadoras e não remuneradas que tratam de um assunto - daí a contracção das palavras: “fan” e “magazine” -, edições fotocopiadas de tiragem reduzida (100 exemplares máximo) e de distribuição ainda mais restrita (amigos e redes de contactos). É verdade que os primeiros fanzines, nos anos 30, que versavam sobre ficção científica, e nos anos 60 de música. Mas «desde os anos 70, que o “fã” tem sido abandonado do "fanzine". O aparecimento da estética “Do It Yourself” do movimento Punk aliado ao acesso às fotocopiadoras, fez com que as pessoas começassem a tratar de assuntos mais pessoais e que não poderiam ser associados à ideia de ser “fã” de seja o que for» 1, ou seja, os editores / autores não quiseram ser meros admiradores da cultura comercial e passaram a querer ser produtores de uma outra cultura, a sua, seja ela qual for. Os Opuntia teriam todas as características para serem zines, por manter as características físicas (tiragem e formato) e as de conteúdo pessoal ou artístico. Então porque se chamam de “Books” e não “Zines”? É que apesar dos fanzines ou zines serem aperiódicos (saem quando podem, dependendo do tempo e economia do seu editor) tem uma numeração como se fossem uma revista. Os Opuntias também saem quando o editor pode e também tem uma numeração poderá ser contraposto, no entanto, a numeração surge como uma colecção de volumes independentes tal como numa colecção de livros de uma editora profissional. O que são os Opuntia Books?
Mesmo sabendo que nem sempre as definições funcionam e que no mundo pós-moderno em que vivemos com avanços tecnológicos que por pouco são quase em tempo real (um exagero, eu sei), o que era certo há 5 anos poderá não ser hoje ou nos próximos 5 minutos. Eu diria que são “livros de autor” impressos na tecnologia barata da sua época tal como noutras alturas aconteceu com outros movimentos artísticos ou criativos: Dada, Futurismo, Surrealismo, Beatnik, Situacionismo, Fluxus, Punk, Rrriot Girl. Daí que não teria dúvidas que os Opuntia pertencem à cartografia de projectos gráficos radicais que misturam Art Brut, neo-psicadelismo, porno-hard-gore, iconoclastia ao ritmo Breakcore, estéticas kitsch do Punk ou do Metal, bichos fofos-freeform onde vamos encontrar (apesar das diferenças de estatuto) editoras como Le Dernier Cri (França), MMMNNNRRRG (Portugal), Boing Being (Finlândia), Francis Laporte (França), Smittkilde (Dinamarca), Bongoût (Alemanha) e Stratégie Alimentaire (França) – onde inclusive Lemos já participou em antologias ou livros a solo.
Na realidade o termo certo dos Opuntia são “chapbooks” mas não podemos usar a tradução da palavra para português porque significa "folhetos de cordel" - «literatura (…), persistente desde o século XVII, fora dos circuitos tradicionais do livro ou, melhor dizendo, paralelo a estes; (…) antecessor do livro de bolso, pela facilidade da sua circulação». 2 Em inglês, tem essa origem antiga - os folhetos eram vendidos por “Chapmen” (vendedores ambulantes) - mas foi rejuvenescida pela literatura marginal dos Beatniks que editavam em pequeno formato e baixo custo de produção. Não vale a pena queixarmos de não termos tido “beatniks” em Portugal, nos anos 50, a tristeza de Salazar era a cultura oficial mas reparem: 50 anos depois temos os Opuntias Beatniks, digo, Books! Rewind!
Raio Verde (Mar’06) é uma selecção de desenhos de Bruno Borges, num estilo gráfico que reduz os objectos ou pessoas a linhas essenciais que retratam fantasias infantis (um militar, animais, um mago). No interior há ainda uma separata com uma bd de quatro páginas que regista uma conversa de café do tipo «só estou bem onde não estou» em castelhano entre um tipo e um urso; e um envelope com desenhos soltos.
Animália (Jun’06) de Frederico é uma colecção de 30 desenhos de dinossáurios com mandíbulas ameaçadoras, feitos por este autor de 4 anos de idade. Um autocolante colado no plástico avisa: «pode ser usado como livro de colorir» por outras crianças - ou adultos, cada um sabe de si.
Suicide Reporté (Mar’07) e Life is life (Set’07) de Sylvain Gérand e Mehdi Hercberg, respectivamente. Sylvain é conhecido pelo seu trabalho de editor: o zine mutante L’Horreur est Humaine (que ganhou o prémio de Fanzine no Festival de BD de Angoulême), e actualmente as Editions Humeurs. Sylvain é sobretudo um virtuoso Pop mas ao serviço do “choque”. Um exemplo do seu trabalho pode ser visto nesta página - a criança com ar terminal que diz “Não tens um ‘naite, ó idiota?!”, ao seu lado, alguém desmaia numa típica convenção de cartoon. Um estilo Reader’s Digest mas com a mensagem “estragada”. Alguns desenhos parecem exercícios de estilo, com uma enorme capacidade de criar texturas complexas. Hercberg é simétrico a Gérand, as imagens que cria num estilo “ratty” (devedor a Gary Panter) de figuras humanas em permanente derrame. Apesar da decadência física, as personagens tem um carisma por parecerem simpáticos patetas. Grind-Cutie Pie? Hum…
Sítios: opuntia-syndrome.blogspot.com, opuntia-books.blogspot.com, chilicomcarne.com.
1 In Cascais Submerso (Chili Com Carne; Set’07)
2 Da mostra documental “Folhetos de Cordel e outros da colecção de Arnaldo Saraiva”, que esteve patente na Biblioteca Nacional este ano.
Texto publicado na Umbigo
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