Lisboa e gentrificação? Que cliché! Já se pode falar é mas é de "brasilificação". Cidade dos ricos e cidade dos pobres, a classe média que vá para o raio que a parta! Enquanto isso acontece, o que não faltam são eventos underground e visitas internacionais de ícones da Cultura alternativa como o engraçadinho do Momus (Zaratan) ou dos barulhentos Melt Banana (ZDB). Mais interessante, quanto mim, são os outros doidinhos menos conhecidos, como o neo-zelandês Ron Gallipoli ou o francês Etienne Brunet, que além de músicos mantêm uma actividade literária quase saudável, quase...
Black Lantern : Journal of Tropical-Industrial Art, vol. 2 (Matadouro; 2017) é uma espécie de Antibothis versão fanzine sobre o tema do "Tropical-Industrial". Objecto fragmentado de vários artigos consagrados a essa corrente cultural dos nossos antípodas, que não é muito diferente das ideias já geradas do Post-Punk, Industrial ou Plunderphonics, ou seja, submergir no lixo cultural e desse caos criar alguma ordem artística. Os manifestos e textos que aparecem neste "jornal" são mais poéticos do que funcionais, com algum cheiro de anti-política e a descoberta quase juvenil de uma ética pessoal. Gallipoli é o instigador deste movimento com a ajuda de Colin-Israel Fulgar e outros artistas. A seguir a ascensão e queda desta estética!
Acouphènes Parade (2012) e Parigot (2016) pela Longue Trïne Roll são dois livros modestos em formato e forma mas cheios de raiva e energia de um saxofonista que escreve como se fosse "sex, drugs & rock'nroll", embora o tom seja mais geriátrico, do tipo "transex, copofonia & free jazz". São relatos de sobrevivência para quem a vida lhe corre tudo mal: sofre de tinido - desculpem o mau gosto para este link -, perde o Amor, é difícil arranjar trabalho (quem é que quer ouvir um músico de Free? ainda por cima semi-surdo?) e o mundo que conhece desmorona-se a olhos vistos - sendo parisiense vive de perto os massacres na Charlie Hebdo e no Bataclan. Ao contrário de um "teenager" que provavelmente se suicidaria com tantos infortúnios, Brunet enfrenta o boi pelos cornos, c'est la vie, até porque há mesmo vida depois de explosões seja num ouvido seja num bar. Ainda é possível boémia mesmo sobre um estado policial, pelos vistos. A escrita dele é tão pot-pouri como as suas músicas. Se o Free é o início para Brunet, ele é um músico curioso e que se interessa por várias outras formas - Glitch, Techno, Rock, músicas de África, Ásia ou Balcãs - basta consultar a sua discografia para perceber isso. Na escrita é tão evidente esse seu espírito irrequieto pois escreve crónicas autobiográficas ou ensaios autoficcionados e não vai de modos, acopla ainda poesia visual ou partituras semi-funcionais. Ele que venha mais vezes a Lisboa e que traga destas prosas cortantes.
terça-feira, 28 de novembro de 2017
domingo, 26 de novembro de 2017
Midas Metal
A Chaospshere faz lembrar a Britney Spears, só por isto: Oops!...I Did It Again! E isto significa: fizeram mais uma reedições babantes e merecidas. Em vinil!
A primeira é sobretudo porque tem o melhor senão o único belo rabiosque nas capas portuguesas. Na contra-capa até ampliam o traseiro da moça mostrando que há mesmo bom-gosto nesta banda. Espero que o demónio que se prepara para sacrificar a Rainha da Magia Negra se foda à grande com um trovão nos cornos antes que a lâmina caia em cima da gaja! Admito que não curti os Midnight Priest quando os vi no 15º SWR - será que ainda apanhei o Rudolfo Mariano nessa altura na guitarra? Nunca curti a onda NWOBHM e quejandos, só mais recentemente é que comecei a dar valor aos Judas Priest (algumas músicas apenas!) ou Mercyful Fate. Sempre achei estranho homens cantarem falsetes e outras histerias. E pior ainda, com letras saídas da Espada Selvagem de Conan. O LP compila o EP homónimo de 2009 e a demo-tape, e graças a isso ouvimos temas repetidos mas tudo bem, esta banda tem energia e tontice quanto baste para se curtir um headbanging jeitoso na casa-de-banho. Nice shit!
Arrisco-me a dizer que Inmunditia Odii Plena será a melhor edição da Chaosphere, e uma das melhores de sempre no espectro Metal. Compila a demo também dos Filii Nigrantium Infernalium e a demo de Bactherion, banda que deu na criação dos Filii. Esta será a única banda de Black Metal Verdadeira Lusitana, coerente desde sempre na forma como aborda o Black Metal. O som é algo entre o rural freak e o Black Metal roto. Esta é a banda que já fazia o cruzamento entre o Punk e Black Metal antes dos nórdicos o popularizarem e capitalizarem-no. A Chaosphere tem feito um trabalho incrível na recuperação metaleira desde 2012 - com excelentes edições de Thormenthor ou Shrine (daqueles que melhor tenho memória) - mas este está mesmo incrível até porque tem um poster homoerótico do vocalista fundador Belathauzer (nada melhor que fotos de jovens que acreditam em algo!) e um fanzine com toda a informação dessa época e das edições originais. Parabéns a todos!!!
sábado, 25 de novembro de 2017
Três livros com o Relvas na Chili (ou uma maneira de lhe dar importância)
vinheta de Anica Govedarica |
Já todos devem saber que faleceu, esta semana o autor de Banda Desenhada Fernando Relvas. Como escreveu Pedro Moura no seu blogue Ler BD:
O Relvas foi, a nosso ver, um “artista de artistas”, naquele sentido em que a sua lavra e obra teve mais impacto sobre toda uma (ou mais) geração de artistas que se seguiram do que propriamente junto a um público mais massificado.
Concordo com o "artista de artistas" mas coloco a questão do público pois bem me lembro, em 1999 numa tasca qualquer da Ribeirinha do Porto à noite, alguém levantar a voz e dizer "tu é que és o Relvas? das BDs?" Ou seja, "alguém do público" identificou-o e amava o seu trabalho. Relvas influenciou uma geração circunscrita aos anos 80, uma época negra da BD portuguesa, em que só se publicava lixo do pior. Autores portugueses nem vê-los - a excepção será o Arlindo Fagundes, com La Chavalita que ainda hoje como obra mantêm o nível comparando com o que pouco que sobra dessa década. Ou seja, houve poucos livros e quase nenhum de jeito. Foi uma década que não houve nem uma Visão nem uma Lx Comics. Revistas especializadas haviam muitas mas todas elas anacrónicas e tristes. A safa de um artista de BD pelos vistos eram os jornais e revistas generalistas - quando havia imprensa, lembram-se? - e foi nesse espaço onde Relvas foi o Rei Absoluto com as suas crónicas urbanas e boémias.
Apesar de nunca termos publicado algum grande trabalho do Relvas, até na Chili Com Carne a sua figura foi-nos surgindo nos últimos anos de formas indirectas (retratado e referido). Nem a Chili que se considera marginal, conseguiu fugir à sua importância.
[Lisboa é very very typical] Relvas aparece numa BD produzida pela sua mulher Anica Govedarica (imagem) no nosso livro sobre estrangeiros a viverem em Lisboa. É uma cena com a autora a auto-representar-se como uma gaivota... Foi um dos grandes feitos de Relvas na BD portuguesa a de mostrar Lisboa, a capital de um país em plena transformação de uma Revolução desiludida para uma Democracia cheia de Espectáculo. A marginalidade e a boémia aparecem na BD portuguesa, bem como a urbanidade e a contemporaneidade. De L123 ao Karlos Starkiller há droga, copos e bifas! Já havia libertinagem na Visão mas perdeu-se o rasto...
[Revisão] Num país de edição fraca, ele foi dos primeiros autores de BD a ver a sua obra a ser reeditada em livros. Isto ainda numa altura que ou se produzia BD Histórica em álbum franco-belga ou então... nada. Aconteceu em 1997 com Karlos Starkiller pela BaleiAzul / Bedeteca de Lisboa, logo no ano seguinte com L123 (seguido de Cevadilha Speed) pela Associação Salão Internacional de BD do Porto até mais recentemente o importante Sangue Violeta (El Pep; 2014). Glórias mais do que merecidas e quase todas estas reedições tinham uma boa qualidade editorial! A sua obra está presente no mercado livreiro e assim se espera que se mantenha durante muito tempo. Felizmente este outro grande feito, proporcionou a que não termos de precisar de recuperar este autor do esquecimento, situação que a antologia Revisão : Bandas Desenhadas dos anos 70 pretendia corrigir e que conseguiu, trazendo à luz pública nomes esquecidos dos anos 70! Ainda assim achei que seria importante a publicação de uma cómica BD originalmente d'O Estripador (1975). Nela relata como seria a redacção desse projecto editorial naquela década caótica. Será das poucas BDs onde se vê os bastidores de pessoal da BD a trabalhar numa revista, eles todos barbudos revolucionários com pinta de consumirem liamba. Só por isso, obrigado Relvas!
[Punk Comix] No livro sobre o "Punk e a BD portuguesa" refiro que o mercado da BD nos anos 80 era tão atrasado que até para aparecer um mero Punk (personagem que seria normal aparecer nessa altura nem que fosse como "mobiliário urbano") numa BD estrangeira traduzida e publicada em Portugal só encontrei uma situação! Uma do francês Serge Clerc no sebento Jornal da B.D. Isto é o indício mais óbvio de como quem dominava o mercado era velho, atrasado e cego. Portugal nunca foi como Espanha apesar da vizinhança e das coincidências históricas. Lá houve revistas ao sabor do seu tempo como a El Vibora ou a Madriz, cá quase nada... Cá quem conseguia aceder revistas espanholas ou brasileiras lá percebeu que BD não significava apenas histórias de caubóis e o raio que o parta! Não admira que alguns putos tenham lido o Sangue Violeta todas as semanas no jornal Se7e e se tenham passado da cabeça ao ponto de começarem a fazer BD, tal como aconteceu com as mil bandas que começaram porque viram Sex Pistols e Ramones ao vivo. Ok, sei que exagero, há que fazer uma proporção (bem descendente) à realidade portuguesa e da banda desenhada, claro está, mas fica bem dizer isto. Ele merecia estes exageros...
Marcos Farrajota
Feira Dona Edite 5#
Dona Edite #5: Bar-convívio, Bancas, Conversas e Concertos, Mini Dona Edite.
Convidados: Vicente Lua e Maria Lobo, Carolina Caramujo, Genes, Earth Drive, Lemon Drops, Feedback, Burning Desire, Urubu Records, Leote Records, Assustado Records, Ateliers da Serafina, Imprensa Canalha, Chili Com Carne, Tipografia do Chapeleiro Doido, Daniel Maia, Elias Gato, Mike Goes West...
quarta-feira, 22 de novembro de 2017
Boxing Day @ Tigre de Papel
A TIGRE DE PAPEL preparou um "Boxing Day" no dia 22 de Novembro
às 18h30 : Apresentação do livro Santa Camarão, de Xavier Almeida. Debate com o autor, Rahul Kumar, Mestre Paulo Seco e Marcos Farrajota.
às 21h30, exibição do filme Belarmino (1964), de Fernando Lopes, seguida de conversa com Anne Leclercq
Entrada livre
José Santa "Camarão" (1902-1963) foi um dos maiores boxistas do mundo e com uma história de vida avassaladora. Esquecido pelo tempo, Xavier Almeida propõe trazê-lo à memória com uma biografia baseada num caderno escrito pelo próprio Santa que relata a primeira parte da sua vida: da sua infância em Ovar à juventude em Lisboa, onde culmina com o início da sua vida profissional. (...) Na conversa participarão Xavier Almeida (ilustrador e autor do livro), Rahul Kumar (sociólogo), Mestre Paulo Seco (boxista e treinador de boxe) e Marcos Farrajota (ilustrador e editora da Chili com Carne).
Belarmino é o retrato de um lutador de boxe, antigo campeão, que ganha a vida a engraxar sapatos. É um filme sobre a solidão, o medo e a derrota. Mostra ainda o lado social de uma cidade: Lisboa. Uma cidade muito diferente da Lisboa das «comédias portuguesas». Fernando Lopes filmou, com enormes restrições orçamentais que, segundo o próprio, permitiram «uma enorme disciplina do olhar», a vida de um pugilista que conheceu algum sucesso nos anos 1960, tendo mesmo combatido no estrangeiro, mas logo regressou à miséria do bas-fond lisboeta.
terça-feira, 21 de novembro de 2017
Agradecimentos à BD Amadora 2017
A Chili Com Carne agradece publicamente ao Festival de BD da Amadora de 2017 por nos ter acolhido e por continuar a dar-nos prémios, epá! Mostrando que há, sem dúvida, uma vontade deste festival em chegar ao público que não seja dos habituais "bedófilos" reaccionários.
Aproveitamos também as presenças do australiano Michael Fikaris e o brasileiro Alex Vieira (da Prego) em Portugal para apresentações públicas dos seus projectos. Obrigado a ambos. E também à Sílvia Rodrigues, Clube do Inferno e Sapata Press por terem aparecido com os seus zines...
Recuerdos dos dias passados:
Aproveitamos também as presenças do australiano Michael Fikaris e o brasileiro Alex Vieira (da Prego) em Portugal para apresentações públicas dos seus projectos. Obrigado a ambos. E também à Sílvia Rodrigues, Clube do Inferno e Sapata Press por terem aparecido com os seus zines...
Recuerdos dos dias passados:
...é o rap! Fikaris e Farrajota numa "battle" porcalhota |
Fikaris e as fikarettes! |
Vendendo a Alma ao comercialismo bacoco! Ga-ga-ga-ga... |
Thanks Fikaris for the wonderful time in the Festival and outside the festival!!!
Garfield, o fofinho cínico com a Dama Fofura Mariana Pita... YEAH!!!!
Pato & Xavier a fazerem merda no autógrafos... |
sábado, 18 de novembro de 2017
quinta-feira, 16 de novembro de 2017
Desastre urbanístico
Um lote de discos da Urbsounds! A Eslováquia é bastante dada às electrónicas e esta editora mostra um catálogo ecléctico que vai do Noise ao Techno, sempre com sabores contemporâneos, tal como a Thisco já foi neste rectângulo no principio do milénio.
Das últimas edições lançadas este ano temos o CD Sickening Digital Rainbows do italiano Venta Protesix - sim o mesmo desta k7! Zeus, se uma k7 da Urubu deixa dúvidas sobre o que fazer sobre um objecto, um CD nem tanto... Harsh Noise Digital Ultra-glitch puro, daquele que deixa o corpo bastante aleijado - isto é um eufemismo, uma vez que as células auditivas não se regeneram. Já não tenho idade nem paciência para isto, qual o limite de se ouvir música Noise? Se pudesse proibia o artista de ter acesso a computadores ou outros acessórios digitais durante seis-seis-seis meses para ele ver o que é bom para a tosse!
Também desagradável mas mais interessante é o LP do chinês Mei Zhiyong e do suiço Dave Phillips, dois monstrinhos do Noise. Será complicado perceber quem fez o quê quando se tem estes dois "noisers" a trabalhar em conjunto. Desconhecendo o trabalho do músico chinês, fico a adivinhar quais serão os sons de Phillips, suponho que sejam sobretudo as disrupções sonoras e os "field recordings" de centros urbanos, pesados, duros e "dark" - pelo menos é o que um gajo imagina quando ouve os seus discos. As partes mais Harsh Noise, serão de Zhivong?
Seja como for, este é o tipo de discos que se deve ouvir de manhã, a fazer o chá e as torradas, a tirar as fezes da caixa de areia da gata e quando se pensa, à janela, que a vida da cidade é de uma violência extrema. Tanta como este disco... Então, porque se leva uma coisas destas para o conforto do lar? Uma pergunta pertinente...
Dentro do Noise ainda há o CD Unspoken Misanthropic Narrator dos Hlukar que lembra os tempos da editora norte-americana Load Records e o seu catálogo de Noise Rock experimental e brutal. Se os Hlukar fazem barulheira com computadores e sintetizadores, a atitude deles é de Rock Reptiliano. É o género de música que poderia servir de banda sonora para ler as BDs do Musclechoo, graças aos seus ritmos de "moto-serra-ciclismo" e caos controlado de ruído industrial. Esta caminhada pós-apocalíptica prolonga-se em 30 minutos girinos, digo, giros, desculpem!
Nos últimos anos tem havido um "revival" de Techno Indústrial ou Pós-Indústrial e este Ordeal de Makkatu é isso mesmo que é. E é tão cinzento e frio como a capa do CD. Há muita gente a fazer disto não se sabe bem para quê na Era do Trap. Em 2017 ou em 1997 sempre será música chata. O mesmo não se pode dizer de Inter Alia (2016), um LP em vinil branco-padreco do duo Jamka. Sobre um Techno minimal parece haver mais mistério auditivo sobre cada uma das faixas, ou pelos surpresas e rotas inesperadas. Em vinil os sons tem mais profundidade e textura. Tenho de ouvir isto melhor, sem dúvida...
O melhor do pacote é sem dúvida a "mix-tape" (e é mesmo uma k7!) The Animal Musicians de DJ Zoologist - que é nem mais nem menos o nosso Camarada Balli! Pouco depois da polka bolonhesa, eis outra "mixtape" em que ele se vira para músicas feitas por ou com animais... Trabalho de recolha importantíssimo mesmo que falhe com algumas obras como o Kondole dos Psychic TV ou Plat du jour de Matthew Hurbert - embora aqui os animais sejam torturados e cozinhados...
Temos os Beatles Barkers (vozes humanas a imitar cães a cantarem os "fab four"), cães (Caninus), papagaios (Hatebeak) e sapos (Amphibian) como vocalistas de bandas Grind/ Death / Hardcore, insectos e baleias com ajuda de gente importante como o Leonard Nimoy (o gajo do Star Trek, sim) ou Graeme Revell (SPK), gataria "gangsta" (Meow the Jewels), tudo numa grande orgia inter-espécie e inter-genéro. Talvez seria mais giro dispersar os materiais ao longo da mistura invés de concentrar, por exemplo, quatro músicas dos cães "beatleanos" embora, convenhamos, já aconteceu rir-me feito um louco com este excesso em filas de trânsito. A k7 é acompanhada por livrinho que explica as fontes do material misturado, textos que faz pensar sobre a condição do animal neste mundo antropoceno. Elvis is shellfish! Elvis is shellfish! Elvis is shellfish! (Puppetmastaz dixit)
Das últimas edições lançadas este ano temos o CD Sickening Digital Rainbows do italiano Venta Protesix - sim o mesmo desta k7! Zeus, se uma k7 da Urubu deixa dúvidas sobre o que fazer sobre um objecto, um CD nem tanto... Harsh Noise Digital Ultra-glitch puro, daquele que deixa o corpo bastante aleijado - isto é um eufemismo, uma vez que as células auditivas não se regeneram. Já não tenho idade nem paciência para isto, qual o limite de se ouvir música Noise? Se pudesse proibia o artista de ter acesso a computadores ou outros acessórios digitais durante seis-seis-seis meses para ele ver o que é bom para a tosse!
Também desagradável mas mais interessante é o LP do chinês Mei Zhiyong e do suiço Dave Phillips, dois monstrinhos do Noise. Será complicado perceber quem fez o quê quando se tem estes dois "noisers" a trabalhar em conjunto. Desconhecendo o trabalho do músico chinês, fico a adivinhar quais serão os sons de Phillips, suponho que sejam sobretudo as disrupções sonoras e os "field recordings" de centros urbanos, pesados, duros e "dark" - pelo menos é o que um gajo imagina quando ouve os seus discos. As partes mais Harsh Noise, serão de Zhivong?
Seja como for, este é o tipo de discos que se deve ouvir de manhã, a fazer o chá e as torradas, a tirar as fezes da caixa de areia da gata e quando se pensa, à janela, que a vida da cidade é de uma violência extrema. Tanta como este disco... Então, porque se leva uma coisas destas para o conforto do lar? Uma pergunta pertinente...
Dentro do Noise ainda há o CD Unspoken Misanthropic Narrator dos Hlukar que lembra os tempos da editora norte-americana Load Records e o seu catálogo de Noise Rock experimental e brutal. Se os Hlukar fazem barulheira com computadores e sintetizadores, a atitude deles é de Rock Reptiliano. É o género de música que poderia servir de banda sonora para ler as BDs do Musclechoo, graças aos seus ritmos de "moto-serra-ciclismo" e caos controlado de ruído industrial. Esta caminhada pós-apocalíptica prolonga-se em 30 minutos girinos, digo, giros, desculpem!
Nos últimos anos tem havido um "revival" de Techno Indústrial ou Pós-Indústrial e este Ordeal de Makkatu é isso mesmo que é. E é tão cinzento e frio como a capa do CD. Há muita gente a fazer disto não se sabe bem para quê na Era do Trap. Em 2017 ou em 1997 sempre será música chata. O mesmo não se pode dizer de Inter Alia (2016), um LP em vinil branco-padreco do duo Jamka. Sobre um Techno minimal parece haver mais mistério auditivo sobre cada uma das faixas, ou pelos surpresas e rotas inesperadas. Em vinil os sons tem mais profundidade e textura. Tenho de ouvir isto melhor, sem dúvida...
O melhor do pacote é sem dúvida a "mix-tape" (e é mesmo uma k7!) The Animal Musicians de DJ Zoologist - que é nem mais nem menos o nosso Camarada Balli! Pouco depois da polka bolonhesa, eis outra "mixtape" em que ele se vira para músicas feitas por ou com animais... Trabalho de recolha importantíssimo mesmo que falhe com algumas obras como o Kondole dos Psychic TV ou Plat du jour de Matthew Hurbert - embora aqui os animais sejam torturados e cozinhados...
Temos os Beatles Barkers (vozes humanas a imitar cães a cantarem os "fab four"), cães (Caninus), papagaios (Hatebeak) e sapos (Amphibian) como vocalistas de bandas Grind/ Death / Hardcore, insectos e baleias com ajuda de gente importante como o Leonard Nimoy (o gajo do Star Trek, sim) ou Graeme Revell (SPK), gataria "gangsta" (Meow the Jewels), tudo numa grande orgia inter-espécie e inter-genéro. Talvez seria mais giro dispersar os materiais ao longo da mistura invés de concentrar, por exemplo, quatro músicas dos cães "beatleanos" embora, convenhamos, já aconteceu rir-me feito um louco com este excesso em filas de trânsito. A k7 é acompanhada por livrinho que explica as fontes do material misturado, textos que faz pensar sobre a condição do animal neste mundo antropoceno. Elvis is shellfish! Elvis is shellfish! Elvis is shellfish! (Puppetmastaz dixit)
segunda-feira, 13 de novembro de 2017
(...) o Marcos Farrajota, que me ajuda muito (e que é o punk mais generoso e mais carinhoso que eu já conheci) (...)
cartaz em Lisboa que apareceu na mesma altura do Corta-E-Cola / Punk Comix |
Já perdi a conta dos documentários sobre o Punk português que foram feitos nos últimos anos. Agora foi mais um feito pela RTP e Antena 3 - Uma espécie de Punk - que é o melhor de todos apenas porque além de ser o mais curto (consegue dizer o mesmo que outros em menos tempo!) tem mais qualidade de produção e melhores imagens de arquivo. De resto, é o mesmo chorrilho de banalidades já escritas e conhecidas que vão de 1978 até 1990.
Passar dos 90 é que já têm todos medo!
Agradecem-me no final dos créditos e ao Afonso Cortez - talvez porque viram no(s) nosso(s) livro(s) A Verdade. Mas pouco adiantou, o Punk para esta malta, que anda a snifar o cuzinho do Punk para fazer guito, é só a "Música". Ora, a música é o que menos interessa, até porque 99% dela era e é uma valente merda.
Aqui vai um excerto do meu Punk Comix para ver se chegamos a algum lado: o punk tornou-se num movimento ligado à Anti-Globalização/Capitalismo, à defesa dos direitos animais, ao veganismo, femininismo e anti-racismo como relata Craig O’Hara em The Philosophy of Punk. Até, um académico da BD conseguiu perceber que: Acima de tudo, fica a ideia de que a maior herança do punk é a cultura do do-it-yourself, aliando-se então uma das tendências mais marcantes da banda desenhada moderna portuguesa, a da emergência e formidável produção de fanzines, a essa prática particular que ocorreu de forma tão dramática e especial no punk.
Mais do que isto ou é esquecido ou parece que se quer apagar de forma intencional.
Falar sobre os Punks que levaram porrada nas manifestações contra a McDonald ou contra as Touradas, isso já não serve para as narrativas bacocas destes documentários ou nas discussões que se possam ter sobre este movimento. Ignora-se que são os Punks que "okupam" as casas que o Estado ou os especuladores imobiliários que deixam ao abandono ou que lutam na rua contra a escumalha Nazi!
Pensar ou divulgar isto, parece proibitivo! Agora, passado estes anos todos, em que essa luta foi esquecida, ser Punk já é fixe desde que se esqueça as dores de quem combateu por algo que acreditava, algo correcto e para o bem da sociedade que ela própria ignora e despreza. Qual é que foi o intelectual ou artista dos últimos anos que levou na boca da polícia? Qual deles reclamou à séria da sua editora que o explora ou que explora outros? Não me lembro de ninguém, só de banalidades populistas como os feminismos à Capicua e aquela perua que queria transportes públicos só para mulheres - uma tia que nunca andou de autocarro, obviamente. Será por isso que não leio Peixotos, Tavares e quejandos? Hum...
Até dizer em público que se é Punk é porreiro. O título deste "post" é sacado de uma entrevista da autora de BD Cecília Silveira na Blimunda. A Cecília é amiga e sei que ela disse isto de uma forma coloquial e simpática numa conversa relaxada mas de repente é isto que sinto sobre "ser ou não ser punk". Tudo a gente é ou foi ou pode ser... Nada contra, a Liberdade do Punk permite-o, ao contrário que dizem os guardiões do "verdadeiro punk" - sabe-se lá se ainda existem ou que estejam preocupados com tal em 2017, no máximo acho que são coleccionadores de artefactos...
Sim, queria ser punk quando era "teenager", ter ar de galo de combate e meter nojo a toda sociedade que é mesmo nojenta. Redundante talvez, a crista veio tarde e durou pouco tempo. Ficaram outros valores que não foi na Universidade ou noutro lado "normal" que me ensinaram. Foram as "distros", fanzines, as editoras e as pessoas dos meios underground que me mostraram como se pode fazer coisas com ética e sem cedências. Ser "punk" neste milénio é aderir às causas que O'Hara refere ou então se preferirem nem é preciso ser "nada" para se aderir a estas ideias porque elas são boas, simples, desejadas e virtuosas mas... mas... mas... Quando os cronistas-punheta do Público escreveram sobre os ataques a autocarros de turistas em Barcelona pelos moradores afirmando que estas praticaram actos de terrorismo (como se um morador fosse um bombista!), como contra-argumentou e muito bem o blogue L'Obéissance est morte: Durante décadas, os ecologistas defenderam um modelo agrícola livre de pesticidas. Claro que foram acusados de “radicalismo” já que os pesticidas, desde que “adequados às normas impostas pelas entidades reguladoras”, eram considerados indispensáveis às boas práticas de uma “agricultura moderna” que se impunha nos países desenvolvidos e que promovera a substituição progressiva da figura retrógrada do agricultor por aquela hodierna do empresário agrícola (...). No entanto, em 2013, um estudo demonstrava que 92% dos cursos de água franceses estavam contaminados por pesticidas, devido às práticas da agricultura intensiva, apenas escapando à contaminação generalizada algumas zonas montanhosas e outras onde ainda predomina uma agricultura pouco intensiva, pouco consumidora de herbicidas, os maiores culpados da contaminação. (...) Também acusados de “extremistas” têm sido aqueles que, principalmente em França, se têm rebelado nas ruas contra a invasão publicitária do espaço público. Estes “radicais” têm limpado paredes inteiras do metro do marketing que enche o campo visual das nossas cidades, questionando assim a hegemonia (ideológica) que os industriais detêm hoje sobre o nosso quotidiano. Basicamente, defendem que a penetração da publicidade em todas as esferas da existência condiciona os nossos comportamentos e reduz a nossa liberdade, pelo que há que atacar esse monopólio da imagem que goza de toda a legalidade democrática. Será o seu ponto de vista insensato e perigoso para a comunidade? Ou, inversamente, não estará uma vez mais o extremismo precisamente do lado que os “radicais” combatem?
Quando se escreve, desenha, edita e publica-se o que se quer, tal não é divulgado nos "meios sociais" - quem inventou esta expressão caricata? Pior é quando estes "meios sociais" mais tarde ou mais cedo limpam as Culturas de milhares de pessoas - olhem o livro do Queercore na Time Out. Assim sendo, só se pode ser mesmo é "punk", quer se queira quer não. como tal só se pode mandá-los para o caralho!
Poderia-se "dar alvíssaras pelo agradecimento no documentário" mas eu prefiro é dar-lhes masé pissas pelo agradecimento porque não contribui em nada directamente para estar nos créditos. Não estive em contacto com ninguém da Antena 3 / RTP, não forneci nenhuma informação ou material para merecer lá o agradecimento. Serão remorsos de terem seguido o guião da parte do livro do Afonso Cortez? Porque são "punks" e agradecem por tudo e por nada!? Se não me tivessem dito que estava nos créditos não teria visto se quer o programa porque não vejo TV nem nenhum media tradicional. Mudem ou morram!
sexta-feira, 10 de novembro de 2017
Fotografias e texto da apresentação do livro "Berlim, cidade sem sombras"
No passado dia 9 de Novembro, na Galeria Zé dos Bois, foi apresentado o livro de Tiago Baptista, "Berlim, cidade sem sombras". A apresentação foi feita pelo autor, por Marcos Farrajota e por Joana Miguel Almeida que tão preciosamente pensou e preparou um texto sobre o livro, a quem tanto se agradece, e que se transcreve em baixo. A soirée foi alegrada pelo convívio dos comparsas e alimentada a copos e conversa.
Este livro de pequenas narrativas evoca os três meses que o Tiago passou em Berlim, no contexto de uma residência artística no ano de 2013. Digo “evoca” porque este livro não parte de um diário gráfico utilizado na altura, mas de um registo de memória a posteriori, com todas as hesitações e incertezas que invariavelmente temos ao lembrar uma história que já se passou há meses ou anos. Essas dúvidas – que o Tiago assume – traduzem-se em falas rasuradas, em personagens sem expressão, sem cara. Em desenhos que às vezes são pintados digitalmente e outros numa aguarela fluida quase onírica. Admitindo que as suas recordações se dissolveram no tempo, reflecte também, uma vez que está em Berlim, sobre o lugar da memória cultural: afinal, do que nos lembramos nós? O que é que lembramos e o que é deixamos esquecer? Quem é que merece ser lembrado e esquecido?
Este foi o Inverno menos luminoso em décadas, diz-nos logo que abrimos o livro. E portanto não há sombras. Este foi um tempo difuso e o Tiago estende-o – o tempo – para registar meses mais tarde a sua experiência na cidade. Da memória que reconstrói, e ela é sempre uma construção, já não sabe bem o que aconteceu de facto. Por exemplo, quando visitava uma roulotte chamada “Jenin” para comer um falafel, já não se recordava, se era um mapa que estava inscrito nas paredes da roulotte, ou se eram nomes de pratos. E chamar-se-ia Jenin como a cidade da Cisjordânia ou Jenien com “e”? Noutro momento, recorda o encontro com um amigo que lhe diz que a ponte de Warschauer constituía uma antiga passagem dos judeus para Auschwitz. Seria verdade? Hoje o Tiago tem dúvidas que esta conversa tenha, de facto, acontecido.
Mas o que é certo é que debaixo do chão que pisamos, as camadas de um tempo que passou não deixam de lá estar, mesmo que certos locais e passados continuem, não na sombra, mas como nome do livro sugere, sem sombra. Como é o caso das coisas invisíveis, que não se podem ver, a não ser para quem as recorde, as chame pelo nome, verbalize o seu nome e as sua histórias.
Pergunta-se a dada altura, o autor: “onde estavam as sombras duras, sombrias que são a projecção das silhuetas dos objectos, dos edíficos, das árvores, da nossa própria existência?” Tiago parece surpreender-se, amiúde no seu livro, com o a toponímia que nos faz ver outros mundos ou outros tempos como quando se depara com a praça Anton Saefkow Platz, que evoca o nome de um resistente comunista. Ou quando se depara com um edíficio que fora uma espécie de associação cultural e desportiva do tempo da RDA. Sem referência a isso. A sombra só existe quando em contraponto com a materialidade. Na sua ausência, o Tiago apercebe-se que há “um céu pesado cheio de cinzas que transformou o que existe num todo contínuo tépido, mole, sem consistência, melancólico, indiferenciável e indiferente, quase incolor”.
E neste tempo que o Tiago não viveu, os seus vestígios são encontrados, amiúde, ao longo do livro, comercializados aqui e ali, como evocação de um passado não vivido. Seja no postal com um bocado do muro de Berlim que recebeu do seu amigo, seja na loja de segunda mão em que encontra uma secção de roupa da RDA (um fenómeno aliás muito presente na Alemanha desde a década de 90, designado por Ostalgie – Nostalgia da Alemanha Oriental).
Este livro é um livro auto-biográfico de pequenas histórias, impressões da cidade, focado no quotidiano do Tiago. Passando da experiência da sua residência artística e das dificuldades criativas até ao relato de um feliz encontro com o rapaz de Tondela que trabalha num restaurante, com que aliás o livro termina. Tal como o encontro com o rapaz do falafel que faz o Tiago questionar-se se ele teria vindo ali parar através de uma obscura rota de imigração, também o português que está ali à sua frente no restaurante de comida do Mar Negro, representa essa “humanidade em movimento” própria da “modernidade líquida” (Bauman, 2007). Que tal como o Tiago, não pára, mas a partir de uma perspectiva inegavelmente mais despreviligiada [como o Pedro Moura (2017) bem refere na sua crítica ao livro]. Portanto nesse sentido, este é um livro que é também sobre um um presente ao qual talvez tenhamos que estar mais atentos. Mas é também um livro sobre as várias dimensões do tempo, sobre a relação do passado e do presente. Ou sobre, na expressão de Sharon Macdonald, “past presencing” (2013) , ou seja, modos de sentir o passado no presente.
E nesse sentido, o Tiago na sua banda-desenhada evoca-nos um tempo perdido, eventualmente em desaparecimento, lembrando-nos como o passado é construído – e desenhado – à luz do presente. Nesta mescla entre o passado e o presente, o Tiago dá a estes lugares visibilidade, fá-los existir nos seus desenhos. Bem como às pessoas com quem se vai cruzando e que imprime para sempre neste livro. Nesta cidade sem sombras, como lhe chamou, dá-lhes luz."
Bauman, Z. (2007). Liquid Times, Living in na Age of Uncertainity. Cambridge: Polity Press.
Macdonald, S. (2013). Memorylands: Heritage and Identity in Europe Today. Londres: Routledge.
Pedro Moura. (2017). Berlim. Cidade Sem Sombras. Tiago Baptista (Chili Com Carne). Obtido de http://lerbd.blogspot.pt/2017/10/berlim-cidade-sem-sombras-tiago.html
"Eu gosto muito deste livro por várias razões. Mas gosto, particularmente, de ver a banda-desenhada do Tiago que, sem a opacidade da sua pintura, nos permite lê-lo de outra maneira, com mais intimidade a partir dos seus pensamentos narrados pela letra delicada com que escreve as legendas. E, claro, pelos desenhos.
Este livro de pequenas narrativas evoca os três meses que o Tiago passou em Berlim, no contexto de uma residência artística no ano de 2013. Digo “evoca” porque este livro não parte de um diário gráfico utilizado na altura, mas de um registo de memória a posteriori, com todas as hesitações e incertezas que invariavelmente temos ao lembrar uma história que já se passou há meses ou anos. Essas dúvidas – que o Tiago assume – traduzem-se em falas rasuradas, em personagens sem expressão, sem cara. Em desenhos que às vezes são pintados digitalmente e outros numa aguarela fluida quase onírica. Admitindo que as suas recordações se dissolveram no tempo, reflecte também, uma vez que está em Berlim, sobre o lugar da memória cultural: afinal, do que nos lembramos nós? O que é que lembramos e o que é deixamos esquecer? Quem é que merece ser lembrado e esquecido?
Este foi o Inverno menos luminoso em décadas, diz-nos logo que abrimos o livro. E portanto não há sombras. Este foi um tempo difuso e o Tiago estende-o – o tempo – para registar meses mais tarde a sua experiência na cidade. Da memória que reconstrói, e ela é sempre uma construção, já não sabe bem o que aconteceu de facto. Por exemplo, quando visitava uma roulotte chamada “Jenin” para comer um falafel, já não se recordava, se era um mapa que estava inscrito nas paredes da roulotte, ou se eram nomes de pratos. E chamar-se-ia Jenin como a cidade da Cisjordânia ou Jenien com “e”? Noutro momento, recorda o encontro com um amigo que lhe diz que a ponte de Warschauer constituía uma antiga passagem dos judeus para Auschwitz. Seria verdade? Hoje o Tiago tem dúvidas que esta conversa tenha, de facto, acontecido.
Mas o que é certo é que debaixo do chão que pisamos, as camadas de um tempo que passou não deixam de lá estar, mesmo que certos locais e passados continuem, não na sombra, mas como nome do livro sugere, sem sombra. Como é o caso das coisas invisíveis, que não se podem ver, a não ser para quem as recorde, as chame pelo nome, verbalize o seu nome e as sua histórias.
Pergunta-se a dada altura, o autor: “onde estavam as sombras duras, sombrias que são a projecção das silhuetas dos objectos, dos edíficos, das árvores, da nossa própria existência?” Tiago parece surpreender-se, amiúde no seu livro, com o a toponímia que nos faz ver outros mundos ou outros tempos como quando se depara com a praça Anton Saefkow Platz, que evoca o nome de um resistente comunista. Ou quando se depara com um edíficio que fora uma espécie de associação cultural e desportiva do tempo da RDA. Sem referência a isso. A sombra só existe quando em contraponto com a materialidade. Na sua ausência, o Tiago apercebe-se que há “um céu pesado cheio de cinzas que transformou o que existe num todo contínuo tépido, mole, sem consistência, melancólico, indiferenciável e indiferente, quase incolor”.
E neste tempo que o Tiago não viveu, os seus vestígios são encontrados, amiúde, ao longo do livro, comercializados aqui e ali, como evocação de um passado não vivido. Seja no postal com um bocado do muro de Berlim que recebeu do seu amigo, seja na loja de segunda mão em que encontra uma secção de roupa da RDA (um fenómeno aliás muito presente na Alemanha desde a década de 90, designado por Ostalgie – Nostalgia da Alemanha Oriental).
Este livro é um livro auto-biográfico de pequenas histórias, impressões da cidade, focado no quotidiano do Tiago. Passando da experiência da sua residência artística e das dificuldades criativas até ao relato de um feliz encontro com o rapaz de Tondela que trabalha num restaurante, com que aliás o livro termina. Tal como o encontro com o rapaz do falafel que faz o Tiago questionar-se se ele teria vindo ali parar através de uma obscura rota de imigração, também o português que está ali à sua frente no restaurante de comida do Mar Negro, representa essa “humanidade em movimento” própria da “modernidade líquida” (Bauman, 2007). Que tal como o Tiago, não pára, mas a partir de uma perspectiva inegavelmente mais despreviligiada [como o Pedro Moura (2017) bem refere na sua crítica ao livro]. Portanto nesse sentido, este é um livro que é também sobre um um presente ao qual talvez tenhamos que estar mais atentos. Mas é também um livro sobre as várias dimensões do tempo, sobre a relação do passado e do presente. Ou sobre, na expressão de Sharon Macdonald, “past presencing” (2013) , ou seja, modos de sentir o passado no presente.
E nesse sentido, o Tiago na sua banda-desenhada evoca-nos um tempo perdido, eventualmente em desaparecimento, lembrando-nos como o passado é construído – e desenhado – à luz do presente. Nesta mescla entre o passado e o presente, o Tiago dá a estes lugares visibilidade, fá-los existir nos seus desenhos. Bem como às pessoas com quem se vai cruzando e que imprime para sempre neste livro. Nesta cidade sem sombras, como lhe chamou, dá-lhes luz."
Bauman, Z. (2007). Liquid Times, Living in na Age of Uncertainity. Cambridge: Polity Press.
Macdonald, S. (2013). Memorylands: Heritage and Identity in Europe Today. Londres: Routledge.
Pedro Moura. (2017). Berlim. Cidade Sem Sombras. Tiago Baptista (Chili Com Carne). Obtido de http://lerbd.blogspot.pt/2017/10/berlim-cidade-sem-sombras-tiago.html
terça-feira, 7 de novembro de 2017
Se o mundo é uma sanita então Portugal é o quê?
Não me lembro onde vi a primeira vez o fanzine Psicóse Infantil... Talvez tenha sido no vácuo existencial das "sessões" no Clube Português de Banda Desenhada em 1990 ou em 1991. Foi alguém (o Fazenda? o Brito? o Lino?) que me emprestou dizendo que ele era "a minha cara". E era! Se calhar por causa dele que, em 1992, comecei com o Pedro Brito & cia, o Mesinha de Cabeceira para quebrar a monotonia dos outros fanzines dos anos 90 - eram das coisas mais quadradas e chatas que havia. Acho, modéstia à parte, que o Mesinha foi essa excepção juntamente com A Mosca (4 números, 1994-97) e pouco mais. E este Psicóse... Enfim, que é como quem diz, ninguém soube deles e duvido que alguém tenha percebido que houve um segundo número (duplo, por isso três números, ena!), excepto o Geraldes Lino, claro, um mega-coleccionador de fanzines de BD.
Este Verão saiu o livro do Punk e apareceram logo gajos a mandarem vir que faltava nele isto ou aquilo (uau!). Um deles foi o Fernando Gonçalves (que conhecia porque teve uma loja de BD em Faro, a quase-extinta Ghoul Gear) mas ao menos ofereceu-me estes dois (três) números. Zeus! É verdade! Mea culpa! Como poderei ter esquecido disto!? (Simples, nunca tive um exemplar meu e passaram-se mais de 25 anos!). Que chapada do passado! Ya! Lembrava-me das páginas do primeiro número, dos desenhos à Gotlib e sobretudo das colagens de filmes Gore. Eis a tipologia daquela época: três marmanjos punk-metaleiros na secundária que curtiam BD e música, e pelos vistos filmes e política (citam Hegel!), fazem um fanzine A4 a preto e branco não tendo pejo em mandar bocas à merda grossa que foi o Cavaco, a "taveirada" das Amoreiras e a skinaria nazi - lá 'tá ela sempre presente na BD como refiro no livro do Punk Comix!! Depois do segundo (terceiro!) número acabam. Nunca mais fizeram nada, pelo menos em BD. Traíram a humanidade. Moral da história: Nada é raro em Portugal porque passados 26 anos encontrei este fanzine que só tinha lido uma vez na vida. Se fizermos uma reedição do livro do Punk, sim ele será incluído! Como ignorar esta beleza?
No meio disto tudo, a Chili Com Carne recebeu um estagiário que fez o que lhe apeteceu - calma, havia umas regras básicas e pedagogia! Incluo neste "post" o Cursed Tales do Marco Gomes, um rapaz de Leiria, por ele ser "metaleiro" e como tal pode servir para fazer uma comparação das diferenças de produção de zines nos 90 por malta da mesma simpatia do Som Eterno (oh oh oh). É um ping-pong sem fim e talvez desnecessário porque pura e simplesmente as coisas mudaram mas embiquei em compará-los! O Marco é um rapaz simpático (todos os metaleiros o são!), íntegro e empenhado mas tem consigo os tiques de uma geração que me fazem comichão. Será "generation gap" ou o pedaço de "nostalgia" que o Psicóse trouxe que obrigam a escrever estas linhas? Tentarei não ser um velho reaccionário...
O livrinho reúne três BDs executadas por Gomes, com todo o suor de quem quer mesmo apostar nesta área criativa. Tem defeitos por causa da incontornável binómio imaturidade e aprendizagem. O esforço e trabalho que concedeu foi dando frutos e melhorias constantes nas BDs - e ok, vá, também a minha orientação ao longo do processo do estágio ajudou. Logo aí, faz-me alguma confusão saber que um zine é feito num ambiente escolar. Tudo bem se for como reacção à própria rotina fascista da escola, sem professores a controlar, olha que porra! Mas sendo os motivos de estudo do Marco a BD e a edição, Cursed é mais livro de autor que um fanzine canalha. Se calhar a discussão acaba aqui ou pelo menos devo deixar de referir Cursed como fanzine. Um fanzine tem de ser como o Psicóse, ou seja, de forma espontânea com energia a disparar para todo lado. Um zine tem de ser feito fora da hora de expediente senão fica manso. Tudo o que Gomes fez para o seu livro foi calculado, com uma expectativa profissional e objectivos técnicos a cumprir.
As diferenças entre os dois objectos são ainda maiores porque os primeiros eram um grupo de amigos e Gomes está sozinho, talvez não por opção porque vive numa cidade pequena que não deve ter tantos cromos da BD para se juntarem para fazer uma publicação porcalhona. O Psicóse eram fotocopias mal-paridas e baratinhas enquanto que o Cursed é de um rigor gráfico bestial, bem impresso quase "deluxe". Os "psicóticos" odiavam o poder e eram mal-criados, Gomes nunca desafia o poder e ensaia o terror como tema, o que é um beco sem saída em 2017. O "Terror'17" é o Trump ou Pedrógão Grande e não clichés simbólicos de Morte e Loucura à la Edgar A. Poe. Aliás, Trump e acólitos conseguem juntar num só corpo estas duas ideias - Morte e Loucura.
Loucura era sem dúvida a plataforma dos "psico-boys" enquanto que em Gomes é tudo estilizado e nada alucinante, apesar de a querer glorificar, inutilmente em fracasso tirando talvez The Family Man, curiosamente a primeira BD a ser criada, a mais curta e a mais escatológica. Hum... Acho que os miúdos de agora são mais controlados e/ou auto-controlados. Se calhar não se pode esperar as mesmas explosões de antigamente. O controlo nº1 é logo a merda dos smartphones que os pais oferecem para saber onde andam, daí ao "chip-GPS" enfiado no corpo, já deve faltar pouco. Controlo nº2 é o massacre e pressão que tem para serem "alguém", de preferência com sucesso e fama. Pais psicopatas - sim, estes é que são os doentes e não os metaleiros dos anos 90 - metem-nos a aprender piano ou aguarela ou as duas coisas logo aos 6 anos já a pensar que vão ter grandes artistas e génios na família. Nos ensinos básicos o próprio sistema já estudam economia para que os seus valores maiores sejam o Dinheiro e Dinheiro apenas. A razia máxima deve ser o pré-universitário e universitário em que pouco se pensa nem se deixa reflectir, é Bolonha para despachar canudos para alimentar o Capitalismo. E já agora, pelo que assisti durante o KISMIF, os mestrados e doutoramentos não são mais do que um mercado como o da produção infinita de cabeças de Pez.
O cenário é dantesco, em que todos querem sair profissionais em algo quando acabam a universidade para irem para o mundo do trabalho. Não é assim, meus caros, pouco adianta sair diplomado em BD ou em 3D quando não se leu um bom grego clássico ou um francês humanista ou um austríaco bem bem bem deprimido e assado. Ou um livro sobre Anarquia ou sobre o esclavagismo português ou... o que quiserem. Sem a ajuda do camarada livro, um gajo muito mais fiel que o colega de carteira, não há crescimento nem filosofia de vida. Nem boa arte...
domingo, 5 de novembro de 2017
Lá na Amadora com os fofinhos!
Chegou o novo livro da Chili!!!
Lá fora com os fofinhos de Mariana Pita! Uma antologia que reúne as suas várias BDs espalhadas por aí e mais algumas inéditas!
DOMINGO, 5 de Novembro, às 18h, a autora vai estar a assinar os seus livros quentinhos...