Apontamentos rápidos de vários livros de editoras independentes que tenho apanhado por aí...
Tudo indicaria que este seria o livro do ano mas
Desobedecer às Indústrias Culturais (Deriva; 2017) de
Regina Guimarães desilude. Metade do livro é uma análise acertada às ideias neo-liberais das "indústrias criativas e culturais" e sobre os desastres do Porto sobretudo por causa do merdas do Rui Rio e a gentrificação / disneylização da cidade - fenómeno que está atingir quase todas as cidades no mundo. Mas a outra metade é uma preguiça que só se justifica porque já se sabe que os poetas não curtem trabalhar. Então para encher chouriços Guimarães mete as (poucas) respostas a um questionário que fez a grupos "do contra" que só dizem leviandades para despachá-la. O pior, é que nada é dito COMO desobedecer! Não que um gajo queira uma cartilha de (des)obediência mas pelo menos entender o que fazer num cenário tão complicado em que vivemos. Já se sabe que quem trabalha neste meio independente artístico e cultural (sobre)vive cheio de contradições e paradoxos, justamente por isso é que merecia mais análise e discussão, não basta manda uns bitaites a soar a ressabiado.
Shame on tha hippie!
Prosa poética feminista-queer pós-25 de Abril é a forma mais fácil de apresentar
Lábio/ Abril (Traveller + Presente; 2015) de
Daniel Lourenço - o nosso "agente provocador" quando apresentamos publicamente
o livro sobre o Queercore do Camarada REP. Para simplificar ainda mais, ou para ficar mais angustiado, é escrito que foi dito no 25 de Abril que "a revolução não foi feita para prostitutas e homossexuais reivindicarem" - General Galvão de Melo
dixit. Com isto, nada melhor que uma
revanche literária dedicada a todos que ficaram excluídos da "democracia". Mesmo que se possa dizer que no máximo este bandalho de militar poderia estar ser reaccionário de forma meramente coloquial (seriam as prostitutas os vendidos? e os homossexuais os covardes?), convenhamos, a declaração serve na mesma para posicionar as mulheres e queers num cantinho sossegado e servil em 1974. Sendo data zero da nossa actual sociedade então este servilismo ainda está presente em 1984 ou 2014. Lourenço escreve contra um evento político feito de espingardas e pilas (os standards mentais dos militares) onde nitidamente precisava de mais cus e de conas. Imaginem como seria Portugal se o Mário Soares fosse gaja, o Eanes paneleiro ou o Pinto Balsemão
transgender? Teria sido um país bem melhor, sem dúvida...
A
Grain of Sound além de ter voltado e continuar a lançar música experimental de qualidade (um dos melhores discos de sempre foi feito por eles -
este), agora mete-se nos livros! Já antes - há muito tempo - tinha uma revista em linha, a
Sonic Scope Quartely, que mostrava que não brincavam em serviço.
Cinza (2016) é um livro de fotografia de
Nuno Moita mas para os puristas não será nada disso. As fotografias tiradas entre 2009 e 2016, em viagens a vários continentes, estão sobrepostas umas sobre as outras criando um caldeirão de cinzas que não permite fazer reconhecimentos de lugares ou de situações, como se espera da "realidade" da fotografia. Se calhar o que temos aqui é um livro de "foto-montagem" em que as cidades reais são transformadas em locais dignos do
Blade Runner ou
Neuromancer. O "cinza" da excelente impressão lembra que esse locais imaginados futuristas (mesmo que distópicos) deram lugar ao deserto do nosso século incapaz de ter uma visão de futuro mesmo que seja só para os próximos cinco minutos. O livro é acompanhado com um CD de
Carlos Santos, tão nubloso como livro, sendo impossível não o considerar uma banda sonora. A voz da quarta faixa lembra os manifestos "this" do Rasalasad dos
Antibothis... Hum, ladrão que rouba ladrão, mil anos de perdão.
Os portugueses continuam a ser uns broncos no que respeita à imagem. Prova disto é
Fátima Kitsch : Outra estética (Fronteira do Caos; 2017) da Camarada
Ondina Pires, um livro que deveria ser um "picture book" e não, é uma cagada digital... Depois de tratar do realizador maldito
Kenneth Anger e o "rei do rock português" Victor Gomes, este terceiro livro de Ondina é sobre o "merch" que se produz naquele penico chamado Fátima. Para alguns poderá ser considerado oportunista lançar um título assim no ano em que se celebrou, com laivos de ecoterrorismo e acidente social, os 100 anos das revelações alucinadas dos três pastoritos. No entanto, conhecendo a autora, o interesse pelas santinhas de plástico e faiança é genuíno, a Ondina é uma coleccionadora nata, uma "nerd" pelo kitsch mais kitsch - não teria ela sido dos
The Great Lesbian Show ou co-autora de fotonovelas com bonecada? Foi uma coincidência cósmica o livro ter saído por esta altura...
Feito de um texto simples e respeitoso, é explicado o kitsch, a criação e fabricação dos objectos de devoção a Fátima e para finalizar deveria ser uma galeria de fotografias da colecção de Ondina mas infelizmente as imagens são colocadas ao molho, mal impressas (impressão digital), com legendas pouco explicativas - aliás, nem são numeradas para indexar as referências no texto - e sobretudo mal-paginado sabe-se lá porquê! É preciso estar a rodar o livro centenas de vez para ver tudo como deve ser. A culpa, parece-me, é pelo facto de ser um "split-book" (de um lado em inglês e de outro em português) e por isso, talvez, os editores não quiseram colocar as imagens por uma ordem de leitura conforme se venha do lado inglês ou do outro. Assim colocaram todas as imagens na horizontal num sentido de quem vem do lado inglês e do outro de quem vem do português tornando-se num caos que dá jus ao nome da editora. É uma pena, este curioso acervo e extravagante conhecimento sobre o mesmo merecia ser melhor tratado. Diria que parece um livro da Paulus mas até estes emissários da ignorância fazem melhor...
Tonto (Ed. Valientes; 2017) é uma compilação de BDs, cartoons e cartazes para concertos punk do mexicano
Abraham Diaz que também faz jus ao título... quanto à edição, antes demais, é excelente, o design de La Sanntera (aka, Camarada
Lam López) melhora de edição para edição, julgo que se pode dizer que é um dos melhores designers de livros de BD do momento.
O conteúdo é divertido, desenhos porcalhões e tal, o grafismo é como se o estilo do Don Martin (da revista
Mad) tivesse sido roubado pelo Vuillemin usando as "falhas" do Gary Pather. Tal como o Mike Diana quando foi para tribunal explicar os seus desenhos mostrou que o que fazia era por necessidade de deitar para fora os horrores da violência que lhe chegava pelos media e pela sociedade, também Diaz reage à ultra-violência da sociedade mexicana e deposita-nos em tanta merda sem sentido que se pode sufocar nela. A diferença entre os dois, é que o primeiro oferece ainda personagens inocentes, em que ainda se pode identificar naqueles bonecos toscos um bocado de humanidade que irá ser posta em prova com o Sade como Júri, em Diaz isso não acontece. Depois de fechar o livro, já não me lembro o que aconteceu de tão
horribilis nas suas páginas...
Por fim,
Comiczzzt! Rock e Quadrinhos : Possibilidades de Interface (Contato Comunicação; 2015) de
Márcio Mário da Paixão Júnior - o granda-boss da Monstro Discos,
Voodoo! e festival TRASH - é a sua tese de Mestrado, onde ele procura um interface entre o Rock e a BD.
Livro interessante que peca pelos trejeitos chatos da escrita académica -
boooring - e pelo descuido gráfico do livro - nada de grave, como o livro da Ondina, mas percebe-se que quem o fez faltava-lhe amor pela coisa... Aprende-se várias curiosidades culturais no que respeita ao grafismo de discos ou sobre o
underground comix dos anos 60, sendo que a procura de Márcio acaba por ir parar ao seu projecto musical, a banda
Mechanics, mais concretamente no CD e o livro de BD
Música para Antropomorfos de autoria do grande Fábio Zimbres - que assina uma bela capa, estragada pelo logótipo da editora, breargh... É este "making of" que acaba por ser mais incisivo pois se seguiram os "links" desta resenha já perceberam que a
Música para Antropomorfos tem um conceito (e bom resultado, faça-se justiça!) muito interessante e híbrido.
Food for brain!