terça-feira, 17 de setembro de 2013

Comix Remix, parte II

Este artigo serve o proposito de divulgar uma perspectiva nova de fazer Banda Desenhada usando o conceito de “remix” banalizado na música Pop. Na primeira parte do artigo centrei-me sobretudo na manipulação de imagens – “cadáveres-esquisitos”, colagens e “detournement” – que possibilitam usar “matéria-prima visual” pré-existente para obter novas narrativas mas, esqueci-me de outro grupo de experiências – o Drone Comix!


WTF!? Drone comix!

Tira sacada à revista brasileira Animal

O realizador David Lynch chegou a fazer uma série de BD, a tira humorística (!?) The Angriest Dog in the World (1983-1992) que era constituída por uma tira de quatro vinhetas sempre com as mesmas imagens mudando apenas o texto nas vinhetas. Em Salut, Deleuze! (Fréon, 1998) de Martin tom Dieck com ajuda de Jens Balzer (texto), os autores repetem as mesmas nove páginas de uma BD cinco vezes no álbum. Cada repetição apresenta um texto diferente de forma a apresentar as teorias de “repetição e diferença” do filósofo Gilles Deleuze (1925-1995).

Para além destas repetições da mesma imagem (vinhetas ou páginas) também é de se referir casos em que o mesmo texto pode ser reinterpretado como é o de Tatanka (1) dos espanhóis Felipe H. Cava e Raúl, que usam o mesmo texto (de Cava) para ser ilustrada três vezes (por Raúl) de formas totalmente diferentes – a primeira de forma figurativa, a segunda iconográfica e a terceira abstracta. A reinterpretação teve o seu momento de glória recentemente, quando em 2010 o centro cultural “Cidade da BD” de Angoulême produziu a exposição, e respectivo catálogo, Cent pour cent, em que autores contemporâneos criavam uma versão de uma prancha “clássica” que lhes fosse querida.


Agora sim, é a segunda parte deste artigo!


Nesta tentarei mostrar uma segunda tipologia de “comix remix”, desta vez focada nas potencialidades de “misturar” unidades exclusivamente narrativas, como vinhetas, tiras ou BD’s inteiras. Se no primeiro grupo de “comix remix” apresentado, o cerne era a “criação” dirigida pelo artista sem quase intervenção de terceiros, o próximo grupo de exemplos, a BD é oferecida para o usufruto dos leitores ou dos editores, como se fosse um “open-source” em que os autores perdem o controlo (parcial ou total) sobre a sua criação, embora sem o extremismo como acontece na música porque na BD não há ferramentas electrónicas tão simples de manejar como há na música - basta pegar em dois CDs como Project Bicycle (Ache Records; 2006) ou o EP Bipolar (Raging Planet; 2006) dos [f.e.v.e.r], ambos têm uma faixa áudio com os sons separados (samples) da música original para poderem ser misturados por outra pessoa que saiba mexer num “software” como o Fruityloops.

Daí que a forma mais normal de “perder controlo” seja posto sob a forma da leitura da obra, oferecendo ”jogos narrativos” sob a forma de livro (ou objecto ou livro-objecto) ou de instalações em exposições de BD.


Construindo histórias


Em 2008, Jucifer participou num projecto de BD em que se usava “Post-It’s” (2) para fazer BDs originais, posteriormente coladas à parede numa exposição de uma galeria. Enquanto a maioria dos outros participantes fizeram histórias lineares nestes quadradinhos colantes (cada quadrado representava a maior parte das vezes uma vinheta), Jucifer além de ter intitulado o seu trabalho de Post shit (um feito em si, já que a distinguia dos autores betinhos) aproveitou o facto dos quadrados dos “post-it” permitirem ser vinhetas autónomas que podem ser soltas, colocadas em qualquer parte e como tal alinhadas de forma aleatória, como a autora ou os visitantes desejassem! Embora essa oportunidade dos visitantes de poderem mudar a ordem não foi dada durante a exposição, tal como infelizmente, a exposição não foi mais repetida para podermos ter um novo “remix” / nova leitura da história. Mais tarde foi feita uma edição de autor deste trabalho, novamente sem a hipótese de se poder misturar as imagens porque apareceu na forma de um zine agrafado que prendia as “vinhetas livres” à estrutura do códex.


O "Fim do Mundo" de Pedro Franz pronto a ser misturado! 

Já o segundo volume de Promessas de Amor a Desconhecidos Enquanto Espero o Fim do Mundo (edição de autor; 2011) de Pedro Franz é um pacote com vários papéis laminados que permite misturar tudo ao acaso e ser lido como o leitor quiser. O mesmo acontece com a caixa Building Stories (Pantheon; 2012) do “bébé chorão” do Chris Ware, que é constituída por 14 publicações de formatos bastante diferentes e que permitem ler uma história como se fosse um puzzle (3). As várias fases da vida das personagens são esquartejadas nessas tais 14 publicações, ou seja, nenhum desses livros / jornais / panfletos / brochuras tem uma “história completa”, tudo é feito de vários episódios aleatórios, com o típico existencialismo deprimente de Ware. Esse vazio existencial e a legendagem em letrinhas minúsculas que não me cativaram para ler aquilo tudo até ao “fim”, perdi alguma coisa?



Bio 421 aberto à toa...
Há também livros encadernados por argolas com as páginas do miolo cortadas em duas ou três partes, sobretudo no campo da ilustração para a infância como o fabuloso Animalário Universal do Professor Revilod (2003) dos mexicanos Javier Sáez Castán e Miguel Murugarren. Na BD não é assim tão normal mas vão-se fazendo este tipo de experiências aqui e acolá, como um zine italiano que descobri no Festival Crack, intitulado Bio edifício 421 (Lök; 2012) que reúne vários autores de um colectivo em que se pode misturar as suas tiras – três por página – para criar várias histórias diferentes. Para haver um nó narrativo, foi estabelecido a existência de duas personagens e uma estante Ikea para montar, e para “punchline”, uma frase final: Quem mais se ama menos pode amar.

o livro de instruções e algumas bases de copos da Strippble

Literalmente “jogos”, encontramos vários objectos lançados pelo movimento OuBaPo, como por exemplo, o Coquetèle (L’Association, 2002) de Anne Baraou e Sardon, uma «banda desenhada de três dados não ordenados». Já antes, Baraou tinha feito outra BD idêntica, Après tous tans pis (Hors Gambit; 1991) com desenhos de Corinne Chalmeau. Ambas são caixas com três dados, cada face do dado tem uma vinheta. O “leitor-jogador” tem de deitar os dados aleatoriamente, para depois juntá-los resultando numa sequência para ler. Emula portanto uma tira de BD sendo possível obter 216 (6 ao cubo) hipóteses de leitura. Também há o tabuleiro ScrOUBAbles (2005) que ao invés das normais letras do jogo Scramble temos vinhetas para criar pequenas histórias; e ainda DoMiPo (2009) que é dominó, só que invés dos números nas peças temos vinhetas. Na Eslovénia, a equipa da revista Stripburger com as mesmas premissas fizeram o Stripple (2008) mas desta vez com bases de copos! A ideia é colocar as bases de copos numa mesa e procurar combinações narrativas interessantes com as BDs de Matej de Cecco, Sasa Kerkos, Matej Lavrencic, Marko Kociper, Jakob Klemencic e Andrej Stular. Cada autor fez uma BD de seis vinhetas; cada vinheta equivale a uma base de copo, o que permite colocá-las numa mesa e misturá-las entre elas. Nas indicações deste objecto, a organização oferecia um prémio à melhor combinação e indicavam também que os “masters” deste jogo, a dada altura, podem usar as bases para aquilo que realmente servem: para colocar copos e garrafas em cima, de preferência de bebidas espirituosas! Se fores um “bar fly” e “comix nerd”, este é o teu jogo!


ignorem o cemitério escandinavo, topem a estrutura de madeira com a BD de Roope!
Síntese destas experiências todas é Ghost Story, do finlandês Roope Eronen, uma BD publicada na antologia Glömp X (Huuda Huuda; 2009) e ao mesmo tempo uma instalação da exposição homónima. Trata-se de uma estrutura de madeira constituída por quatro paralelepípedos, cada paralelepípedo tem quatro tiras de BD pintadas sobre as faces mais compridas e ao serem rodadas com um manípulo (colocado de lado em cada paralelepípedo) mudam o sentido da “página” – ou seja, com a ajuda do objecto obtemos uma “página” de BD de quatro tiras que giram. Na exposição era portanto uma peça interactiva que o público podia ler as várias possibilidades de ler histórias diferentes. No livro é oferecida a hipótese de recriar estes paralelepípedos recortando as páginas do livro – cada página tem as quatro tiras de cada paralelepípedo. Se for o leitor ainda estiver sobre efeitos do Stripple poderá recortar directamente no livro, danificando um belo livro de BD experimental!


Descubra as 7 diferenças

Em Setembro de 2003 tive a oportunidade de ver os dois suecos residentes em Berlim Max Andersson e Lars Sjunnesson a trabalharem no último capítulo do Cão Capacho Bósnio (4) e foi curioso reparar o tempo que eles discutiam entre eles – ou então o tempo pareceu-me enorme porque não percebo patavina de sueco – por causa de um detalhe de uma vinheta. Depois de um consenso sobre a história e a sua paginação, os autores desenhavam por cima de desenhos de um e do outro. Uma imagem esboçada leva tinta de um ou de outro, mesmo depois disso um dos autores não sabe se o outro irá respeitar o desenho proposto ou se irá colocar ainda mais tinta em cima para fazer mais contraste, alterar a forma, detalhes, texturas, etc… O objectivo de ambos é apresentar uma “BD coerente”, ou seja, que não se consegue descobrir quem desenhou o quê nem mesmo os próprios, que a dada altura acham que quem fez a BD foi um “terceiro autor”. Este é um exemplo da história recente da BD onde apareceu o impensável, duplas de autores que escrevem e desenham juntos, sem haver uma separação de tarefas tão típica da BD ligada à produção industrial em que se criaram cargos especialistas para despachar prazos de publicação: argumentistas, desenhadores, legendadores, coloristas, etc... No Cão Capacho Bósnio, tal como nas “comix-jams”, o trabalho foge ao controlo absoluto dos criadores, embora o processo seja feito pelos próprios artistas. A diferença das “jams” é que aqui vamos encontrar uma “fusão” de entidades enquanto que nas “jams”, vinheta a vinheta, os estilos individuais de cada participante são evidentes.

Apesar de misturar dois médiuns bastantes diferentes, a fotografia e o desenho, é curioso referir outra “fusão” que é Le Photographe (3 volumes, Dupuis; 2003-06) cujas provas de contacto do fotógrafo Didier Lefèvre (1957-2007) são usadas por Emamnuel Guibert para contar as aventuras de Lefèvre na sua primeira missão com os Médicos Sem Fronteiras no Afeganistão em 1986. Aquilo que identificamos como BD (sequências de desenho e texto) é usada nestes álbuns como “cola” entre as várias elipses temporais das fotografias ou grupos de fotografias – a BD conta o que não se “lê” entre as fotografias. Injustamente esquecido é o trabalho do “terceiro autor” - que ao contrário do Cão Capacho Bósnio aqui é realmente uma pessoa! - Frédéric Lemercier, que fez o desenho da composição das páginas do livro, um trabalho de Designer que deu uma forma funcional ao trabalho. Sabendo-se muito pouco o que foi concretamente o seu trabalho no arranjo das imagens, vinhetas, cor, etc… mas isto lembra como muitos produtores de música parecem “designers” de música, manipulando sons e colando-os para criar uma forma.


exemplo de páginas do "Boring Europa", nesta BD de Marcos Farrajota é usado desenhos de outros autores: Ana Ribeiro, Aleksandar Zograf e Joana Pires

Estas duas características, a “fusão” do Cão Capacho e o “design” do Fotógrafo, são pontos importantes na “BD de viagem” do Boring Europa (Chili Com Carne; 2011). Originalmente a ideia deste livro era juntar os diários de viagem dos seis elementos da Chili Com Carne que entre 1 e 15 de Setembro de 2010 viajaram pela Europa numa turné, como se fossem uma banda de Rock mas ao invés de dar concertos suados andaram a vender livros e a montar exposições. O cansaço da condução de cidade em cidade anulou o desejo de desenhar em quase todos os seus elementos, fazendo a posteriori uma BD colectiva e não apenas um livro de esboços de viagem. Como um dos autores do livro, acumulei também o papel de editor, e a Joana Pires o de Designer, juntos fomos ordenando uma multiplicidade de materiais soltos que fomos acumulando durante a viagem: rabiscos, desenhos da viagem, material gráfico variado, moedas, multas de trânsito, “comix jams”, bilhetes, ilustrações, e-mails,… Gerou-se uma BD “freak”, que fundiu tudo isto numa obra para se ler una. São várias as situações em que usei o desenho de alguém para incluir nas minhas vinhetas. Também tiras de uma BD eram deslocadas da prancha original para outra parte do livro. A preocupação principal era manter uma cronologia de acontecimentos e não se repetir os mesmos relatos de cada uma das seis pessoas envolvidas. Um dos momentos de inspiração para a forma como este livro da turné se organizou foi o encontro com o colectivo austríaco Tonto, de Graz. Na entrevista que realizamos aos seus mentores Helmut Kaplan e Edda Strobl, estes admitem que «temos muitas pessoas no grupo que (…) fazem muitos desenhos mas não BD!». O que Kaplan faz com estes desenhos soltos é justamente misturá-los «dando um sentido a eles…» e criando assim BD’s onde não havia!


Hang the DJ!
Creio que um dos primeiros casos de “DJ narrativo” é Ed, The Happy Clown de Chester Brown, um dos livros de BD mais incríveis alguma vez feito e que tem uma estrutura acidentada e casual, para a qual parece que ainda não há uma edição definitiva. Pego na minha, da Vortex (1992), sub-intitulada The Definitive Ed book, embora a Drawn & Quarterly tenha anunciado a definitiva recentemente. A questão das diferentes edições deve-se ao facto de Ed the Happy Clown ter sido pré-publicada em episódios no “comic book” Yummy Fur e mais tarde compilada em livro. A história que Brown conta foi construída sem querer e talvez por isso não haja um consenso sobre a edição final. Nela vamos encontrar elementos surrealistas como mãos que se soltam por pecados católicos (assunto tão norte-americano), vampiros, pigmeus, defecações ad infinitum, buracos interdimensionais, a cabeça do Ronald Reagan no pénis do palhaço Ed, etc... Estes elementos da história foram aparecendo originalmente em várias BDs separadas e sem relação entre elas, de 1981 a 1985. Algumas delas eram bastantes parvas e juvenis como The man who couldn’t stop, que mostra um individuo numa sanita que não consegue parar de defecar. Até que em 1987, Brown começa a unir personagens, situações e ambientes de várias destas BDs para criar uma história coerente, por mais fantasista que seja.

A história editorial de Ed, the happy clown lembra-nos o que acontece com o Cinema em que muitas vezes há “director’s cut” ou versões cortadas pelo produtor ou distribuidor, ou pior ainda, pela censura! Aliás, algumas edições de Ed, como a inglesa, não incluem algumas das BDs “parvas e juvenis” com medo da censura – materializada em confisco e destruição de exemplares sob acusação de obscenidade como tantas vezes aconteceu naquela ilha de puritanos.

A partir daqui podemos chegar ao relato de três projectos contemporâneos em que o editor é o autor principal (o “terceiro autor”) e em que os trabalhos dos colaboradores são manipulados de forma artística – e não meramente “tecno-económica” como acontece com os editores tradicionais. Estes exemplos têm em comum, o facto de serem publicados por colectivos de autores de BD independentes que editam antologias de BD e decidiram expandir a forma de “editar” para além da simples acção de juntar trabalhos de vários autores para paginar por uma ordem ao longo de um livro. A dada altura acharam que deveriam intervir directamente sobre o material a publicar segundo um instinto, uma história a contar ou uma visão.

Uma página da GIUDA #4 com desenhos de Armin Barducci (1ª e 4ª vinheta), Gianluca Costantini, Darkam e Liliana Salone.
Em Itália, surgiu a revista GIUDA (4 números, Nov’09/Out’12), da mesma equipa que publicava a Inguine mah!gazine, da qual faz parte a curadora e escritora Elettra Stamboulis e que nos explica em que consiste este novo projecto: We wanted to work as an avant-garde of the beginning of the last century: the graphic design remind this, in particular Vienna's Secessionist. Using automatism, aesthetism, casualty, (…) we were coming from [the Komikaze Festival] year of mapping alternative forms of drawing from all over the world (…) and we wanted to produce something completely different. Also, themes are always connected to a geographical representation: a place is always the center of the story, drawn in a different way that traditional Geography, but it's always Geography. From this idea came also the name Geographical Institute of Unconventional Drawing Art.

Contudo, o que difere o projecto de outras publicações de BD é que em cada número da revista existe sempre uma BD com um texto escrito por uma pessoa (as primeiras três foram por Stamboulis, a quarta por Marco Lobietti) e ilustrado por vários artistas – a lembrar as experiências da BD do Joe Meek no Twilight Jamming. Stamboulis explica: There is a huge work of research behind the texts and the images, but there always an idea of fate and strategies that are coming from OULIPO experiences in literature. It's a script with very few indication divided already in squares. Every artist has his/her text to do, and can read the all story, but cannot see what the others are drawing. The artists are always the same, with some new entries, but it's a close collective. O processo complica-se algumas vezes porque there are also some complete pages that are connected to the general story, but they are written and drawn by the artists. Those pages are a kind of subtitle of elements of the main story and they become short stories itself. In the end Gianluca Costantini collects all the drawing and he puts them in the page. With a sort of magic powder of fortune, every time it works as if everything had been perfectly arranged.

Uma página do Futuro Primitivo com André Lemos, Sílvia Rodrigues e Ricardo Martins

Admito que a razão deste artigo foi o facto de ter produzido o Futuro Primitivo (Chili Com Carne; 2011) e ter ficado desiludido pela ausência de reflexão sobre o projecto, mesmo que tenha publicitado que ele tinha falhado. Ninguém me perguntou porque falhou nem sugeriram situações idênticas para analisar. Pois é! Tive de ser eu a investigar e promover estas ideias que estão a ler agora!

O objectivo do projecto era juntar todos os artistas da Chili Com Carne numa antologia em que iria misturar as suas várias BDs para criar uma nova BD – uma “meta-BD”. Para conseguir alguma unidade no livro, foi sugerido um tema comum (o pós-apocalipse) de forma a manter uma unidade estética apesar dos 40 diferentes grafismos que se podiam encontrar; foi pedido uma estrutura de BD de duas tiras por página para se poder deslocá-las mais facilmente do contexto original para qualquer outra parte do livro; e para manter um fio condutor da “meta-BD”, foi ainda pedido aos autores para escolherem um subtema, ou seja, uma lista de avanços tecnológicos na história da Humanidade - da descoberta do fogo à ovelha Dolly. Também se pedia aos autores para não fecharem demasiado as suas histórias de forma que não houvesse finais demasiado auto-conclusivos.

Tal como quando se compra uma nova aparelhagem, ninguém lê o livro de instruções – já Laurie Anderson dizia isso numa música: "o relógio do vídeo fica para sempre a marcar 00:00" – e foram poucos os autores a respeitar as regras do “jogo”. Apareceu toda a espécie de situações, e juntamente com alguns “cadáveres-esquisitos” pedidos a autores cujas cidades iriam receber a exposição (Beja, Roma, Helsínquia, Malmö), estava instalado o caos. O funcionamento do livro falhou segundo as minhas espectativas de “DJ narrativo” (5) que tentou controlar matérias insubmissas... mas para “fora”, a sensação foi outra como prova a declaração desta leitora sueca: I thought one great thing about Futuro Primitivo was that I couldn't understanding all of it. It felt like that was the point, like a global, multidimensional dystopia and you only understand the bit you can see with your own eyes. On the other hand, I think that was my very own subjective reading experience (I understand a little Portuguese but not enough to be sure what the comics were about, a bit like dreaming and half-understanding). A exposição também falhou devido à falta de tempo para uniformizar formatos porque a ideia era poder misturar as tiras de BD no espaço das exposições tal como o Post Shit. Com o cumprimento dos prazos para ter a exposição pronta em festivais de BD pela Europa e América, não houve “remixes” para ninguém… Fica para a próxima!


Por fim, Tonto Comics é o exemplo que fecha tudo o que se falou aqui, porque o último número (#13, Noise) publicado pela Avant Verlag (2012) fez a ponte entre a BD e a música e os conceitos da “remix”. Este projecto editorial começou como plataforma musical em 1994, daí que tenha sido natural que as antologias Tonto tivessem ligações com a música, sobretudo quando Kaplan assume que usa processos idênticos quer na música quer nas suas BD’s: cut, montage, speed, running direction, superimposition. Kaplan organiza as antologias “com conceitos engraçadinhos” (segundo algumas críticas), numa lógica qualquer que nós não percebermos lá muito bem. É normal encontrar nas páginas da publicação BDs há muito vistas (noutras publicações pelo mundo fora) de autores como Igor Hofbauer ou Marko Turunen, BD’s repetidas não porque haja uma vontade de divulgar estes autores na Áustria (ou Alemanha) mas sim porque estas BD’s têm um valor especial para Kaplan, que segue um programa como se fosse um curador de arte contemporânea. No caso de Noise, ele diz: The material is quite heterogeneous. It has accumulated at my place in the last years (…) Quotes and remixes from the existing material plus additions (…) my own and from others. Partindo das questões da apropriação que a Pop Art levantou em relação ao uso da BD (essa arte anónima e comercial) para se fazer Arte a serio, Kaplan consegue traçar um caminho ou fazer uma pesquisa que coincide com este artigo, interceptando-o com alguns nomes (Max Ernst, Henry Darger e Dice Industries) e com duas novas situações inesperadas que merecem ter aqui um destaque maior.

O motor de partida para o Noise, é que Kaplan fez uma versão de uma página do Jess Collins (1923-2004) que por sua vez misturou nos anos 50 uma BD do Dick Tracy, de Chester Gould. É assim feita uma (nova) referência de artistas que fizeram as primeiras experiências de “mistura de BD”, centrando-se entre o Max Ernst e o Chumy Chumez. Consultem o recente O! Tricky Cad & Other Jessoterica (Siglio; 2012) que inclui o trabalho de colagem de Jess e as BDs “Tricky Cad” e “Nance”, esta última consegue transformar o clássico para toda a família de durões do western “Lance” (de Warren Tuft) numa brilhante orgia homossexual de fazer corar o Tom of Finland.

BD colagem de Jess

Levantei, no início desta segunda parte do artigo, o “problema” (não é um problema, será antes uma dificuldade?) de não haver “software” para misturar BD como há na música, muito ironicamente Kaplan com Edda e Dice Industries inventam e desenharam um esquema de estúdio musical (loops, sinais, volumes, MIDI, LFO, canais mono) para criar no final da “mistura” um grafismo!!! Programadores do mundo uni-vos!

Kaplan, Edda e Dice a gravarem um estilo gráfico!

Dote de poto a tres de Martin Lam


Extra Extra

Talvez não só vivemos um mundo de “copy/ paste” mas também num mundo demasiado rápido. Não só houve a coincidência de eu e o Kaplan estarmos a abordar situações parecidas nos nossos projectos, como outros pelo mundo também andam a explorar estas questões do “remix”. Recentemente tropecei no brasileiro Sama, residente em Portugal, que tem feito algumas BDs usando desenhos soltos que já tinha feito anteriormente, para um texto novo. Experiências destas já todos que fazem BD devem ter feito, claro está. O engraçado é que de repente não é só uma pessoa a exibir este tipo de situações... Outro caso, o Martin López Lam, peruano residente em Espanha, com o zine Dote de poto a tres (Ediciones Valientes; 2013) usa as imagens do seu colossal livro de BD Parte de Todo Esto (De Ponent; 2013) para colocá-las ao serviço de um texto completamente diferente - o que os junta é também que o título de um é anagrama do outro. O resultado é que ficamos na presença de obras gémeas mas separadas à nascença.

Esta é a razão da “remix”, não é fazer tributos ou homenagens ou poupar tempo numa BD nova, aliás, perde-se muito mais tempo a usar trabalho de outros para ficar coerente e autoral. O que interessa é acrescentar algo de novo sobre uma propriedade intelectual que já deu o que tinha a dar assim que foi lançada para o mundo. Quem proibiu o Katz não quer saber disso mas há milhares de pessoas com ferramentas neste exacto momento que podem pegar num dos 14 livrinhos do Chris Ware e melhorá-lo com uma tesoura…


Agradecimentos a Elettra Stamboulis, Sami Aho e Benjamin Bergman. Este artigo foi publicado em Setembro no jornal finlandês Kuti, em inglês com tradução de Ondina Pires.


(1)   Edição em português na revista Quadrado #1, 3ª série (Bedeteca de Lisboa; Jan’00)
(2)   Quadradinhos. Histórias Postadas (Galeria Yron, 2008)
(3)   Já agora, este trabalho de Ware lembra a mesma estratégia fragmentada do romance Vida – Modo de Usar de Georges Perec (1936-1982), um “oulipista” que neste livro conta as histórias de cada apartamento de um prédio mas o livro enquanto objecto é um único volume de 500 páginas
(4) Há várias edições de Bosnian Flat Dog (título original), em monografias ou em antologias, é só procurá-la na sua língua favorita! Em Portugal, foi publicado o primeiro capítulo na Quadrado (3ª série; Bedeteca de Lisboa).
(5) Disfarçado como unDJ MMMNNNRRRG

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