quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

ccc@tenderete.7

Estivemos no Tenderete (a Laica de Valência) e passado uma semana ainda estamos a aprender a voltar a respirar de tão intenso que foi!

É verdade que os espanhóis têm a mania de imitar tudo, e o próprio cabecilha deste magnífico evento, o camarada Martin Lopez Lam, admite publicamente que se inspirou no Boring Europa e na Feira Laica para ter criado o Tenderete. Ficamos até lisonjeados mas sentimos que fomos ultrapassados dada a qualidade de oferta que vimos naqueles dois dias.

Se calhar, há logo um contexto urbano maior que torna o Tenderete tão potente, é que Valência é uma cidade de artes gráficas, provada por ter ruas com nome de artistas gráficos ou pelo Museu de Ilustração de Valência ou ainda por eventos como a exposição de Ops / El Roto / Rábago na La Nau da Universidade de Valência, justamente todo um oposto a Lisboa que apesar de estar numa latitude idêntica, destruiu os eventos Ilustração Portuguesa e Salão Lisboa, e agora prepara-se para destruir a Bedeteca de Lisboa e a rede BLX.

Se a Laica andou durante imenso tempo a definir-se como projecto, o Tenderete assume-se logo como "auto-edição gráfica e sonora", e mostra sinais de profissionalismo, criando folhas volantes com o programa e a disposição das mesas dos editores. Além de boas edições de ilustração e BD também fomos encontrar boa música, seja do "blues cerdo one-man-show" do camarada Tumba Swing ao "soundart" da plataforma Audiotalaia.



O primeiro tem um novo EP em vinil 7", Lamento Electrico (Calamidad; 2013), que mostra que apesar da pancada pela música do século passado, Tumba Swing sabe ser versátil nos vários tons de Rock'n'Roll; no segundo caso destaco para o CD A Country Falling Apart (2013) de Edu Comelles música ambiental feita de captação de sons, recusando o uso de qualquer tipo de instrumento na elaboração desta música. E tal como Tumba Swing, havia mais malta que divulgava tanto música como livros de autor, como a Bad Weather Press que partilhava mesa com a Orgonomy Records.


Buen Dolor é um fanzine editado por Álvaro Nofuentes e é um mimo para quem curte BD à procura de novas alternativas narrativas e gráficas. Participam uma padilha de autores ligados a um eixo que passa pela Argentina (com o nosso conhecido Berliac), de Valência (entre eles o camarada Lam) e de França, nesta última situação porque Nofuentes estudou em Angoulême. Buen Dolor é um bom companheiro do Kovra, só é pena que os dois estejam parados... porque o último número (o três) data de 2012, o que pode significar que não há mais continuidade ao projecto. O "sexo" (tema deste número) acabou com  o projecto, pelos vistos...

Quem anda cheio de tusa, e se calhar com tusa a mais é o autor do excelente livro Black Metal, Magius. Apareceu com dois títulos intitulados de Murcia, cidade onde reside, e que pelos vistos tem lendas profanas para contar, e depois assina como Yo Perro ou Diego Corbalán para La philosofie dans le boudoir e Eva Braun. Todas estas publicações são a cores, A5 e no máximo com 12 páginas, não têm numeração nem se percebe continuidade caso haja. La philosofie é uma BD que pega no Marquês de Sade e que parece que continua em duas páginas em Eva Braun que é na essência um caderno de esboços do autor e uma fotonovela de um gajo Black Metal a violar (?) uma hipster numa loja de discos (???). Confusão editorial e mental que apela a estarmos atentos ao que se passa no blogue oficial deste tipo muito muito estranho porque se prepara uma magnum opus então temos de esperar com sapiência e veneração! Hail Magius!



Incongruências mais fáceis de explicar são os desdobráveis em acordeão do El Monstruo de Colores No Tien Boca que publica sonhos (ou pesadelos) de crianças ilustrados, a lembrar o conceito de Duplex Planet Illustrated de David Greenberger que recolhia histórias de velhos em centros de dia para depois transformar em BD. Se o início destas publicações eram modestas - o mais antigo que tive acesso, o número 2, The King / El Rey / Le Roi (2010) ilustrado por Mitch Blunt - em formato 10x10cm a preto e branco, os mais recentes o formato não só aumenta (para cerca 15x15cm) como é adicionada uma cor como acontece com Inside my hair / Dentro de mi pelo (#26; 2013) por Thomas Wellmann. A colecção parte sempre de seis sonhos sacados a crianças por Roger Omar entre o México e Valencia -  o editor é mexicano e vive em Valência - mas também há um número com uma criança de Israel - #24, Lie Die / Mentir Morrir (2013) de Fitnat e Roni Fahima (i). Também há excepções como é o caso de Best Friends / Mejores Amigas (2013) de Mireia de Oliva e Wren McDonald (i) e Más Grandes y Viejos / Bigger and Older (2013) de Maria e Amanda Baeza (i) que são nitidamente "fora de colecção" porque ilustram apenas um sonho. São também os melhores deste projecto porque são mais sequenciais e narrativos permitindo que o texto seja explorado de forma mais alargada. Nos outros números, uma página representa quase sempre um sonho e uma ilustração tendo menos impacto. Ainda de referir que participaram neste projecto o português Pedro Lourenço (#11, El Mago / O Mágico / The Magician; 2011) e o moçambicano Rui Tenreiro (#14, Espada y Escudo / Sword and Shield / Espada e Escudo; 2012). Por fim, os sonhos das crianças mexicanas são muito mais violentos e mórbidos que as crianças de Valencia. E quando digo "muito mais"...

Arròs Negre Fanzine (4 números; 2011-13) lembra muita coisa (como a Lapin, Zundap ou ainda a linha estética da No Brow) por causa da sua elegância gráfica e impressão a duas cores. Interessam-se por banda desenhada, ilustração e tipografia mas também por temas sociais ou políticos como se pode verificar pelos temas de cada número: Beltor Brecht, os árabes ou a Espanha republicana. Chama-se fanzine mas parece uma revista literária numa altura em que pensamos que nunca mais irá haver tal coisa como a "nossa" saudosa Quadrado. Talvez seja mesmo um fanzine pelo facto dos trabalhos ainda serem um bocado verdes talvez porque os colaboradores ainda sejam estudantes da Universidade? [como sabemos os estudantes nos dias que correm são a massa menos contudente do planeta, já lá vão os tempos que o Estado tremia com as manifestações de estudantes] Talvez não deveria chamar-se "fanzine" porque acaba por ser pouco contudente, excepto o número dois porque pega em Brecht!

Mob Rule (Dez'13) é um fanzine literário mas que o editor e escritor Alejandro Álvarez Fernández não teve medo em pegar em nove ilustradores valencianos - ligados a estes projectos aqui divulgados como Jorge Parras (da extinta Arght!), Martín López Lam (ed. Valientes), Álvaro Nofuentes (Buen Dolor) ou Elías Taño (Arròs Negre) - para participarem. E não apenas de uma forma óbvia de ilustrar partes dos textos mas fazendo até BD e obrigando o texto a ficar preso para sempre das imagens - temos de aplicar esta fórmula nos nossos livros literários um dia destes e sermos nós a imitar os espanhóis! Interessante...

Por fim, deixo a glória editorial final para o camarada Martin López Lam, que não lhe falta capacidade de provocação, experimentalismo e empreendorismo. Bem sei que a última palavra é repugnante nos dias que correm porque parece que todos nós, por falha total do sistema capitalista, temos de ser todos chico-espertos que devem correr à frente de todos. Ora como sabemos, se o sistema sempre afirmou que há líderes e seguidores e que não há espaço para todos serem o número 1, o empreendorismo que se promove nos dias de hoje parece antes um "socialismo" para tolos. Martin por acaso até podia ser o número 1 ou um líder porque não está preso aos formalismos espanhóis desta Europa cansada, uma vez que o autor é peruano de origem. Este facto, e a sua emigração para Espanha, dá-lhe uma liberdade de pensamento e de acção que ultrapassa os outros valencianos sedentários. Daí que o Tenderete seja obra sua ou as Ediciones Valientes sejam mais cosmopolitas, atentas ao mundo para além do bairro e surpreendentes como provam as duas belas edições acabadas de sair. O número nove do El Temerário mostra como deve ser um "graphzine"! Duas cores e num formato maior que o A4 que é para os desenhos terem poder de nos causar perturbações! Se há muito que estou farto de ver graphzines (sobretudo portugueses e do Porto!) com este novo número voltei a ter fé neste tipo de publicações cheias de desenhos. Assim sim! Depois há o Chemtrail, um desdobrável que pode dar em poster mas que na realidade é uma BD feita de acasos imaginativos e manipulação digital drogada. Um produto a afastar das crianças, não por cenas explícitas mas porque as cores podem fazer danos mentais! Gracias Martin!

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