RIO EM ESQUINA E ESCOMBRO
Tema antigo e basto glosado por quem de talento, dos clássicos Manuel António de Almeida, João do Rio, Lima Barreto ou Mário Pederneiras aos modernos Luís Edmundo, Vivaldo Coaracy e Sérgio Porto, para não falar de Vinícius, Caetano ou Calcanhoto… Mas o espectáculo das ruas do Rio de Janeiro continua, alimentando a veia de novos passantes, flâneurs, turistas, cronistas, artistas, etnógrafos, bloggers e outros retardatários. Como tal, aqui ficam as impressões documentadas sobre algumas curiosidades visuais que se podiam apreciar, no mês de Outubro de 2013, durante um curto trajecto a pé pela zona da Lapa.
Por esses dias, na esquina da Rua Sílvio Romero com a Rua Riachuelo, alguém colara uma série de desenhos coloridos retratando corpos em poses e actos explicitamente eróticos (algumas destas ilustrações foram prontamente rasgadas, inviabilizando um registo fotográfico mais completo). A ideia que assomava era a de que se trataria de um espólio concebido ao sabor de uma relação amorosa entretanto terminada e posteriormente exposta aos olhares do público das ruas. O conteúdo textual que acompanhava alguns desenhos parecia confirmá-lo: «Antes de me ofender / Antes se afastar / Gosto de você, pra começar…» Noutra folha, a mensagem que permitiria dar um sentido ao painel: «Só para você saber eu esqueci de você!», seguida de uma assinatura: «Luiz Rocha» Na verdade, uma simples pesquisa no Google revelou que os textos pertenciam a letras de canções e que Luiz Rocha era, afinal, um artista plástico do Rio de Janeiro devidamente cadastrado e vezado em criações da mesma têmpera. De modo que aquilo que se afigurava um indício de arte-terapia se revelou uma intrigante manifestação de arte de rua estrategicamente colocada num polo de diversão nocturna. De qualquer maneira, arte efémera. E imprevista, também, pelo menos para quem vem de fora e, sem coordenadas, demora o seu tempo a encontrar as referências certas. Neste caso, a riqueza do conjunto é reforçada pelo próprio jogo das descodificações, antes que a recondução a uma matriz autoral lhe confira um estatuto, lhe arrume um sentido…
Prosseguindo a caminhada pela Rua Riachuelo, logo após os arcos da Lapa, a metade arruinada de um casarão centenário desponta como ecossistema gráfico, sobre a qual se inscrevem e colam e afixam todo o tipo de intervenções, avisos, sinais. Nas janelas emparedadas do rés-do-chão, dois grandes painéis de grafitis abrindo amplas perspectivas históricas sobre o Rio (um deles contém uma dedicatória legível «ao povo carioca»). Percebem-se ainda alguns trabalhos mais abstractos, outros mais caricaturais e humorísticos, devendo o transeunte aproximar-se para apreciar devidamente um conjunto de desenhos com motivos obsessivos (esboços de casas assinadas por um tal de Cristiano da Silva, bem como algumas figuras rudimentares, a negro e vermelho, ensaiando passos de dança) que, pelo tamanho reduzido, desafiam a escala convencional da arte de rua. O edifício alberga ainda uma série de tags e pequenos cartazes com palavras de ordem e outras mensagens que soam como despertadores: «Ninguém manda no que a rua diz», «Pense nos porquês», «O que te faz voltar quando sai para comprar cigarro?», «Atenção, isto pode ser um poema». São as marcas do Coletivo Transverso, um grupo formado em Brasília e que se dedica à apropriação artística e poética do espaço urbano: os modelos dos cartazes podem ser facilmente descarregados na Internet e colados por qualquer pessoa (o Coletivo apenas pede para ser informado da sua utilização, de preferência com fotografias). Mas um grande anúncio de «VENDE-SE», aplicado ao próprio casarão, traz-nos de volta à realidade da vida material, a que se junta uma variante para bolsas menos recheadas: «ALUGA-SE KITINETE TEL. 9186-9123». Porém, logo abaixo, um velho letreiro indicando a «Rua Evaristo da Veiga» — que os mapas actuais localizam noutro ponto da zona centro —, transporta-nos de novo para terreno incerto, algures entre o presente e o passado…
O último pormenor de destaque neste curto trajecto vai para um objecto artístico mais usual: um quadro em estilo pós-impressionista mostrando uma rua europeia pintada em cores garridas, e que se encontrava pendurado, ao que tudo indica permanentemente, na parede exterior da pizzaria Guanabara, na esquina da Rua Riachuelo com o Largo da Lapa (trata-se, evidentemente, de uma reprodução). Ampliando a imagem, é possível descortinar uma assinatura sugerindo qualquer coisa como «Burnand», «Bérnard» ou «Bonnard». Mas a obra em causa não é facilmente atribuível a nenhum dos três e, na ausência de pistas concretas, as ferramentas de pesquisa de imagens da Internet são praticamente inúteis, perdurando o mistério e, com ele, a dúvida — mas também o interesse…
(Fotos: Ana Magalhães)
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2 comentários:
Adorei rever o lambe lambe na esquina da rua Riachuelo bela pesquisa e comentário a respeito do meu trabalho, abraço e sucesso!!
Luiz Rocha
Obrigado, Luiz! Lambe lambe é uma boa expressão. Gostei muito desse teu trabalho de esquina! Abraço de Lisboa.
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