segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

SÃO TOMÉ, NO PALCO DOS SONHOS



Contornando a Baía de Ana Chaves pela Avenida Marginal em direcção ao Forte de São Sebastião. Deixando para trás as ruas mais nervosas da cidade, entra-se numa zona de serviços, direcções-gerais, ministérios e quartéis que só pode surgir como inóspita a quem tenta abrir caminho debaixo de intenso calor. O céu está bem carregado, mas nenhum jorro de chuva se abate sobre o rebordo litoral da ilha de São Tomé. Algures por aqui, à direita, a CACAU — ou Casa das Artes, Criação, Ambiente, Utopias. Tem que se abandonar o curso da avenida e entrar por um recinto de terra batida nas traseiras do qual se ergue o pavilhão que alberga a sétima Bienal Internacional de São Tomé e Príncipe (BIS), organizada pelo chefe de cozinha, jornalista, artista plástico, patrão de roça e conselheiro de estado João Carlos Silva, personalidade emblemática do arquipélago.

Pela CACAU têm passado, desde Novembro último, diversas obras de pintura, fotografia, desenho, escultura, serigrafia e vídeo, exibidas segundo um esquema rotativo que deixa algumas delas em fila de espera nas zonas limítrofes do espaço de exposição. Na segunda semana de Fevereiro de 2014, a amostra incluía, para além de duas serigrafias de Warhol retratando Muhammad Ali, uma porção de trabalhos de artistas angolanos, sul-africanos, nigerianos, são-tomenses ou portugueses. Por exemplo, a divertida sequência fotográfica Diary of a Victorian Dandy (1998), do britânico-nigeriano Yinka Shonibare, encenação de um dia na vida de um suposto diletante personificado pelo próprio artista, onde o tom da pele é o pormenor que destoa face às demais figuras, adereços e cenários; e os espectros do Tchiloli — espécie de teatro de rua que reconstitui a tragédia de Carlos Magno, em pleno mato equatorial, diante de uma audiência de vivos e mortos — pairando sobre a obra dos criadores são-tomenses, em particular René Tavares.

René Tavares, Two Lives, Tchiloli (2013)

René Tavares, Inspired by Tchiloli History (2013)
Mas a CACAU é também lugar de sons e sabores, servindo refeições a preço módico e oferecendo concertos a partir do meio da semana. Nas noites de quarta-feira, o público tem a oportunidade de mostrar os seus dons, contando com o suporte instrumental da banda residente. Alguns dos que se atrevem a subir ao palco possuem já algum traquejo, como certo rapaz negro com o cabelo em crista e grandes óculos de armação verde e alça prateada. Quem o conhece di-lo proveniente dos arredores mais desfavorecidos da capital, mas o que salta à vista é o facto de ele ter chegado à CACAU acompanhado de duas mulheres brancas, de aparência francesa ou alemã, cada qual com mais de sessenta anos, e que assistem da mesa à sua actuação. Em redor circula a hipótese de se tratar de um casal lésbico em missão de turismo sexual (ou bissexual), tendo em conta as trocas de carícias verificadas momentos antes entre o jovem são-tomense e uma das mulheres. O rapaz, esse, parece não ter nada a esconder. Interpreta um tema de kuduro cujo refrão é taxativo e convida a pôr de parte apreciações demasiado moralistas da comercialização do sexo, bem como divisões estanques entre predadores e presas sobrepostas às inevitáveis assimetrias económicas. «Eu quero casar / Eu vou casar contigo», diz o puto, e pede o apoio da assistência enquanto olha na direcção da sua eleita. O resto da letra contém alusões explícitas à necessidade de comprar roupa e sapatos. O desígnio é, portanto, claro e condiz com o que, em certas paragens turísticas igualmente marcadas pela pobreza, vem sendo praticado como forma de amealhar algum pecúlio e viajar para um mundo de consumo sofisticado que permanece, por ora, mais distante. Para quem faz parte desse mundo e, saciado de tecnocracia europeia, se deslumbra com os tesouros naturais de São Tomé e Príncipe, o programa afigurar-se-á desesperado e aviltante. Só que esta visão acaba por retirar ao outro, já de si depauperado, a liberdade de escolher os meios para atingir os seus fins. Na CACAU, o palco é aberto. O próximo artista dá pelo nome de “Bill Clinton”: é mais um jovem ilhéu relativamente produzido, cabelo pintado de amarelo e calças vermelhas, a quem faltará, por ora, o par ideal. Mas ei-lo lançando a rede, com uma versão lenta de «O bicho», de Iran Costa…

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