domingo, 5 de janeiro de 2025

Chamar os bois pelos nomes (relatório zines + "indies" 2024)

Pouco a pouco vai-se lambendo as feridas da inércia e ignorância das editoras profissionais e das instituições públicas. É no mundo dos "indies" que se passam as coisas que interessam, mesmo quando a sua dimensão tão consegue influenciar a esfera pública. Azar do caralho...

Ú-quê!?

Começo com QEQTPQE?? (imagem do lado) que é uma antologia de um novo colectivo do Porto - é lá que aparece sempre as boas novas! - a Goteira. Foi o evento do ano na BD portuguesa... Para mim, significa estar menos sozinho contra a ignorância que grassa no meio da BD. (...) vou enaltecer o gesto das três editoras-autoras que meteram mão à massa, lançaram uma convocatória e descobriram artistas novos (...) Os "novos" significa que são novidade para o "mercado". Cada um deles tem os seus vocábulos e estéticas, mais inspirados ou menos, com influências mais óbvias que outras, pouco interessa! O que interessa é que estão aqui 132 páginas impressas (...) completamente diferentes do que se fez aqui na Chili e até no passado portuense (...) Que apareçam mais projectos assim! 

Dignos de novidade: Guarda-Livros de Teresa Arega, pelas Edições da Ruína, A Armação de Daniel Silvestre (sem o ter visto ainda mas acredito que deve ter qualidade) e os minizines de Tetrateles, que são um verdadeiro "work-in-progress" artístico pessoal. 

"O Gato Mariano" voltou ao papel para compilar a primeira parte da sua "graphic novel" (ai!) enquanto um tal de Michi compilou a sua série Meliel, um manga com desenhos super-poderosos. 

Continuaram projectos das editoras Chili Com Carne, Erva Daninha (zines), Imprensa Canalha, Opuntia Books (ambas gráficas) e Sendai (BD japonesa), os títulos O Filme da minha vida, O Hábito faz o Monstro, Invasão, Mesinha de CabeceiraOlho do Cu e Shithole, e foram publicados vários títulos por André Coelho, Gonçalo Duarte e Rudolfo.

Maldito Aquele Lugar (M.A.L.) de Rodolfo Mariano foi recuperado em formato livro, ou seja, os três zines publicados viram "bronze" na sua segunda vida. O que é bom tem de ser republicado para não ser esquecido em meia-dúzia de fotocópias para meia-dúzia de curiosos. Há boa produção em Portugal e ela precisa de ser mais visível, como é óbvio. Ora as editoras especialistas e profissionais parece que estão sempre de olhos vendados. Quando não estão atiram-nos areia para os olhos, como aliás se pode testemunhar que numa ano de muita oferta no mercado livreiro. Dessa fonte infinita a jorrar, só se aproveitou a segunda versão de Here / Aqui do norte-americano Richard McGuire, uma obra tão importante na BD mundial que a editora diz isso mil vezes na sua nota de imprensa - nesse caso não se percebe é porque demorou 10 anos a ter publicação portuguesa. Claro, que só saiu agora devido ao segundo filme que adapta esta obra estar nas salas de cinema! A hipocrisia é um dos maiores luxos já diziam os outros. Dos horrores que atormentam as estantes de BD destacamos, sem ainda não ter lido, os dois volumes de Chumbo do franco-brasileiro Matthias Lehmann, depois de estar desaparecido da edição portuguesa durante 24 anos - a Polvo cagou nele? O resto pouco interessa, esticando a corda há o Zodíaco, as memórias de Ai Weiwei adaptadas pelo casal graco-italiano Elettra Stamboulis e Gianluca Costantini (que no passado colaboraram connosco em vários projectos) mas cujos nomes eclipsaram dos registos do livro devido à gordura chinesa... "Quatro" livros de boa BD pelas "grandes"? Nada mau, já foi pior no passado... embora, percentualmente continua tudo na mesma, não?


Amorcito, Kuti & Kus!

Não é uma letra das "Mata-Ratas" mas a prova viva que a BD portuguesa continua afirma-se além fronteiras. O galego fanzine Amorcito publicou André Pereira, a Dileydi Florez saiu na revista finlandesa Kuti, Miguel Santos na revista sueca C'est BonAna Margarida Matos no fanzine neerlandês Wobby; juntamente com Amanda Baeza e Daniel Lima foram publicados nas antologias letãs Kuš!. Desta mesma editora Sara Boiça teve direito a um mini kuš! 

Matos viu o seu Hoje não publicado nos EUA (e reeditado com nova capa em Portugal - imagem do lado), Carlos Carcassa viu uma colectânea publicada na Mansion House (França), Nunsky teve reeditado em capa dura Erzsebet no Brasil (Zarabatana), Xavier Almeida um livro inédito pela Belleza Infinita (Espanha) e na Colômbia saiu Babelikon, uma colectânea de trabalhos de André Coelho, pela Vestígio.

O colectivo Magma Bruta foi ao Graf (Barcelona), Rui Moura ao Crack (Roma), a Chili ao Tenderete (Valencia) e Vinhetas sobre o Atlântico (A Corunha) - com uma exposição a "comemorar" os quase 30 anos de existência; a Imprensa Canalha ao Tenderete e Autobán (A Corunha) e a Umbra também foi ao Autobán. Francisco Sousa Lobo esteve na Alemanha a convite do Camões. Matos e Ivo Puiupo estiveram com trabalhos representados em Praga, ao Festival Lustr com direito a entrevistas no catálogo do evento - sendo que Matos estve lá presencialmente. Ah! E o Filipe Abranches foi à Feira do Livro de Buenos Aires a representar Lisboa, cena oficial e tal...


Culturismo Hardcore

Foi um ano rico em "mercado dos indies": a FLIFA (como deve ser desta vez, sem direitinhas a foderem o esquema), Parangona (aliada à FEIA da música), Raia e Vieira da Silva em Festa (Lisboa), Feira da Alegria e Perímetro (Porto), Livindie (Arcos de Valdevez), Feira do Livro de Arte (Coimbra) e o Festival de BD e Fanzines de Alpiarça

Mas o que se fez de bom este ano foram duas edições do Culturismo Hardcore (imagem ao lado) na loja Socorro (Porto) que é o "maior evento de nicho" de cultura Pop: videojogos, BD, música feita por pessoas reais e não por palhaços profissionais. A última edição até se dedicou à BD e onde se viu uma divertida performance de Luís Barreto e Bugs a interpretarem diálogos da BD Partir a Loiça (toda) e com intervenções musicais (das bandas que entravam na história). Genial! Para além disso, o culturismo materializou-se em dois números do seu fanzine homónimo. E falo de um fanzine no seu sentido original: obra de vários autores, fãs de cultura Pop à margem e com notícias de situações que nenhum media oficial seria capaz de registrar, como a visita do tradutor de BD japonesa Ryan Holmberg a Portugal. Numa Era de zine washing, fakezines ou post-zines este é o único fanzine TRVE!!!


1000 paus pró galheiro

Barreto foi aliás o Gajo da BD do ano. O tal Partir a loiça foi o zine mais caro de sempre! Editado como mais um número do Mesinha de Cabeceira e publicado entre a Chili Com Carne e o Culetivo Feira, custou 1000 paus (porque foi o vencedor do concurso da Chili do ano anterior, Toma lá 1000 paus e faz uma BD!) mais os custos de impressão e de um CD que acompanhava a edição. Foram feitos 200 exemplares e com um PVP a 10 Euros nunca se conseguirá recuperar o investimento. É esta dose de loucura que se precisa... Barreto ainda fez prá Erva Daninha o Lado A / Lado B. Só mostra que o pessoal do Rock tem mais pica do que os da BD!


Família

A Aldeia Global confunde tudo. Então temos o gringo A Coxa Eléctrica a fazer fanzines em Lisboa, enquanto que o brasileiro Alex Vieira, residente no Porto faz regressar o mítico Prego - cheio de autores do outro lado do atlântico e com Carcasa e Rudolfo como representantes 'tugas. A residente em Buenos Aires Júlia Barata viu o seu livro Família (imagem ao lado) a ser traduzido em português, para a colecção RUBI - ao mesmo tempo que o seu trabalho é rejeitado pela BD Amadora para exposição.

O francês Charles Berberian regressou a Lisboa para falar do seu último livro (inédito em Portugal, claro), a luso-descendente francesa Madeleine Pereira veio mostrar o seu livro sobre os emigrantes portugueses que davam o salto nos tempos do fascismo - a ser editado em português -, e o norte-americano Christopher Sperandio voltou para mais uma exposição. Tudo isto na Tinta nos Nervos. Para quê os festivais de BD?

Sim, é verdade que Tardi e Antoine Cossé estiveram em Beja, e com exposição. E ao que parece estiveram na Amadora a sul-coreana Keum Suk Gendry-Kim, Lehmann e o brasileiro Marcelo D'Salete. Todos estes artistas fazem BD "de intervenção" ou de denúncia social. Do que adiantou? Deram autógrafos a cromos da BD e mais nada!? Algum deles foi entrevistado nos jornais ou na TV? Ou até em sítios em linha especializados de BD??? Pelo menos o Sperandio voltou a ser notícia do decadente Diário de Notícias... Isto para dizer que para os Festivais terem lá "temas contemporâneos" ou uma javardice Pop qualquer é o mesmo. Não é a partir daqui que eles farão qualquer divulgação e/ou expansão do medium para além das suas paredes quadradas. Talvez seja por isso, que haja uma nítida fuga de exposições para outros espaços e que sejam estes que realmente impressionam ou que interessam. Aliás, quando um festival de BD cobra 6 euros para vermos fotocópias em molduras, o que dizer desta fatelada toda!?


Deeptime

Sendo um ano de comemorações do 25 de Abril houve um foco em retrospectivas de artistas gráficos que até criaram uma iconografia desse momento histórico. Excelente a de João Abel Manta, no Palácio Anjos em Algés. Também houve do grande cartoonista António (Vila Franca de Xira), Henrique Ruivo (1935-2020) na Tinta nos Nervos, Cristina Sampaio (Casa da Imprensa, Lisboa) e Fernando Brito (Clube do Desenho, Porto).

Lucas Almeida teve uma exposição de pintura na galeria Passevite mas também mostrou os originais de Contos do Campo. No meio de Arte à séria estavam páginas do Muchechoo : Trump Card de Rudolfo na exposição colectiva Singsong na ZDB. Sem medos!

Continuaram os ciclos de programação do WC / BD (com destaques para Rodolfo Mariano, Amanda Baeza, 40 ladrões, Mariana Pita e Ana Maçã), Storytellers (que acabou este ano) e Flexágono sob a batuta de Pedro Moura para o Festival literário Fólio (Óbidos) com trabalhos de Alexandra Saldanha, André Coelho, António Jorge Gonçalves, Filipe Abranches, José Smith Vargas, Maria João Worm, Miguel Rocha e Miguel Santos.

A mais nova Bedeteca - e também a mais velha - que abriu no Porto começou a sua programação, dela destacamos as exposições de Nunsky e Daniela Duarte. Havendo um historial detrás dos responsáveis pela Bedeteca do Porto - incluindo o saudoso Salão do Porto e a revista Quadrado - espera-se mais e sempre melhor desta instituição em progressão..

Por fim, o melhor, uma retrospectiva de Francisco Sousa Lobo na galeria da escola Ar.Co. intitulada de PAPER WRAPS ROCK (imagem ao lado) e a colectiva Deeptime no Museu Nacional de História Natural e da Ciência, uma parceria entre a rede Icon-Mics e o CIUHCT, onde participam Amanda Baeza, Ana Maçã, André Pereira, Bruno Borges, Cátia Serrão, Daniel Lima, Hetamoé, Mao, Ricardo Paião Oliveira, Rudolfo e os espanhóis Begoña García-Alén, Irkus, Martin López Lam e Roberto Massó. Em ambos casos houve um cuidado para que houvesse uma sobriedade e pensamento expositivo das pranchas - ou seja, não houve macaquices de cenografias kitsch a enfeitar os espaços como se fazem nos festivais de BD. Sendo alguns destes nomes os melhores artísticas contemporâneos portugueses é giro topar que foram parar a outras instituições mais sérias que as "bedófilas", porque será? (não é um pergunta, no máximo é apenas retórica)


Massa

E volto a bater no ceguinho. Todas as maleitas acima referidas revelam a falta de cultura na Banda Desenhada, transversal às instituições públicas ou empresas privadas. De resto, falar de BD como se fala de música ou cinema, continua a não acontecer. Aliás, até foi um ano em que acho que não houve nada na imprensa que fosse relevante - um artigo ou entrevista, por exemplo. No máximo as típicas resenhas com os caracteres bom contadinhos nos sítios do costume. 

Naquilo que é "especializado" pouco a declarar, destaque para as entrevistas a Miguel Rocha, Mosi e Nunsky no sítio em linha H-Alt. De continuar a recomendar o blogue My Nation Underground, claro está! E da minha parte, farto do Bordalo Pinheiro, fiz uma intervenção sobre Carlos Botelho (1899-1982) na Casa da Achada. O Quarto de Jade também fez uma apresentação na Casa Fernando Pessoa sobre o seu trabalho mas só assisti à excelente conversa intimista de Maria João Worm na STET, sobre o seu universo artístico que passa pela pintura, BD ou caixas de luz sem distinção ou hierarquia entre elas, foi lindo! Isto ao contrário da choradeira que foi a conversa para comemorar os 20 anos do blogue Ler BD. Apenas lastimável - como três pessoas que são críticas profissionais só falaram de lugares comuns, e pior ainda, de autores comuns. Para esquecer mais valia o Pedro Moura ter trazido uns copos e charros. Em compensação, organizou o livro Ilan Manouach in Review - Critical Approaches to His conceptual Comics, livro académico pela Routledge, sobre a obra de Manouach - em que encontramos um artigo pela Ana Matilde Sousa.

Já referi aqui a visita do tradutor Holmberg, tendo ido à escola Ar.Co e Tinta nos Nervos (quantas vezes já escrevi este nome neste texto!?) para  educar-nos sobre grande o artista japonês Yoshiharu Tsuge (inédito em Portugal, sim claro) e a emblemática revista Garo (1964-2002). Thanks man!

A Bedeteca de Lisboa continua em trânsito na Biblioteca de Marvila, devido às trapalhadas da Junta de Freguesia dos Olivais - que pela segunda vez teve a sede a ser revistada pela PJ! Já lá vão três anos num bairro inacessível de Lisboa que está aquela que foi uma instituição que deu à BD portuguesa brilho. Em compensação no Porto abriu uma nova Bedeteca, esta será a primeira que é privada (toadas as outras são municipais), financiada pela loja Mundo Fantasma e recupera o acervo da primeira Bedeteca deste país, criada em 1990 pela Comicarte (que organizou o Salão do Porto!), um clube de BD da Comissão de Jovens de Ramalde.

Por fim, instiguei a antologia Massa Crítica, talvez a primeira que se fala de BD em BD - à la Scott McCloud, topam? - que aproveita as participações portuguesas da antologia australiana Opposights (Silent Army, 2021), ou seja, Amanda Baeza, Bruno Borges, Cátia Serrão, Gonçalo Duarte, Hetamoé, Mariana Pita, Pedro Burgos e Rui Moura; e junta novos discursos de André Lemos, André Pereira, Lucas Almeida, Miguel Ferreira, Miguel Santos e Rodolfo Mariano. Cada um à sua forma exprime sobre as suas experiências na cena, explora as formas da BD ou escreve ensaios sobre BD. Alguns são muito sérios, outros hilariantes, e há aqueles que disfarçados de avatares dizem muitas mais verdades que dezenas de blogues da treta... Tinha de ser publicado em português para combater a ignorância! Feito!

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