domingo, 28 de dezembro de 2014

Fazer de novo, fazer do nada (Holambra)

Holambra: Rua Dória Vasconcelos
Ao contrário do que sucede na Europa, onde o espaço é confinado e as construções, encavalitadas umas sobre as outras, dão azo à formação de sucessivas camadas arqueológicas, no território brasileiro as marcas arquitectónicas transactas são, em boa parte dos casos, e na melhor das hipóteses, simplesmente ténues. A herança das civilizações indígenas mantém-se viva na toponímia, nas práticas alimentares, no hábito do sono em suspensão. Mas ela não se inscreveu de todo na pedra, como no México ou no Peru. Mesmo os vestígios do passado colonial ― igrejas, sobretudo ― preservados nas chamadas cidades históricas se afiguram insuficientes para afastar a impressão de um espaço imenso e que se mantém disponível para ser explorado de múltiplas formas, senão cultivado, alinhado, aterrado, escavado, transformado até ao absurdo. No domínio urbanístico, determinadas soluções que noutro contexto seriam prontamente rejeitadas como pirosas, sugerem, ao invés, uma modalidade anti-arqueológica de usar a história, uma modalidade segundo a qual tudo é válido, desde que não redunde em ruína: jardins japoneses, fachadas decoradas com colunas romanas, motéis à beira da estrada imitando castelos medievais, palácios das mil e uma noites ou aldeias esquimós, cidades planeadas apontando decididamente para o futuro, como Belo Horizonte ou Brasília…
O ónibus 693 aproxima-se de Holambra. Pela janela desfilam o antiquário-restaurante Carroça, o motel Obsessão e uma loja que vende cercas, pórticos e outras infraestruturas de roça, expostas a céu aberto ao lado de estátuas decorativas de bois em tamanho natural. O ambiente é marcadamente rural. Pouco depois avistam-se as portas da cidade, erguidas à imagem de um prédio holandês, com grandes janelas quadriculadas e frontões em degraus. O ónibus abranda. É altura de sair. 
Holambra: o nome deriva da junção das palavras ‘Holanda’ e ‘Brasil’. O lugar começou por ser uma colónia de imigrantes holandeses que vieram para o Brasil logo após a II Guerra Mundial e aqui formaram uma cooperativa agrícola dedicada ao cultivo de flores. Tornou-se depois numa povoação e, em 1991, foi elevada à categoria de município. Alguns anos mais tarde, Holambra passou a ser reconhecida como estância turística pelo governo do Estado de São Paulo, muito por causa da sua Expoflora, evento que se realiza todos os anos em Setembro e que granjeou a reputação de maior feira de flores e plantas de toda a América Latina. Para além disso, a paisagem urbana remete-nos, sem mais delongas, para o universo do norte da Europa ― embora, no fim de contas, e como a sequência do próprio nome indica, seja o Brasil que acabe por sobressair. 
A Rua Dória Vasconcelos, também conhecida como Rua Turística, encontra-se em obras nesta segunda-feira de início de Novembro, o que talvez ajude a explicar a ausência de movimento. Nos primeiros quarteirões, as fachadas mantêm-se fiéis ao padrão tradicional indiciado pelas portas da cidade. O único café aberto oferece doçaria variada à base de frutos silvestres, para degustar ao som de música pop cantada em holandês. Do lado oposto da rua, uma loja de souvenirs exibe um escaparate com socas de diversos tamanhos. A roda dos cinco sentidos completa-se. 
Moinho dos Povos Unidos
Perambulando, flanando por Holambra… Ruas praticamente sem movimento, vivendas atrás de vivendas, todas elas com jardins bem cuidados, algumas continuando a seguir o estilo holandês, ainda que de forma mais discreta. A estrada leva-nos até um lago artificial cercado por grandes árvores. Talvez num dia de inverno e com o céu coberto de nuvens se possa experimentar a sensação de estar a caminhar por um qualquer subúrbio da Europa. Agora, no calor de uma Primavera adiantada, é mais difícil chegarmos lá. Avançamos até ao outro extremo da cidade, balizado pelo Moinho dos Povos Unidos, também ele apresentado como o maior de toda a América Latina (assim se constrói uma história à revelia da história…). E pronto. Resta voltar para trás e seguir tranquilamente até ao terminal central: um confortável alpendre a imitar uma casa, de novo com enormes janelas em quadrícula. Os passageiros que esperam, porém, são bem brasileiros: homens de bigode e chapéu de aba larga, com a pele escura e curtida pelo sol, mulheres avantajadas e de blusa justa, moças de minissaia… O ónibus para Campinas passa às quatro horas…


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