1972 / 2022: 50 anos de fanzines de banda desenhada em Portugal - E agora?
Sem desprimor para edições precursoras, como “O
Melro”, editado nos anos 40 por José Garcês, podemos apontar o ano de 1972, como
marco inaugural da publicação de fanzines de BD com o surgimento de títulos
como Árgon, Saga, Quadrinhos, Orion, Ploc!, Yellow Kid e Copra. O 25 de abril
de 1974, proporcionou um novo ambiente de liberdade editorial e de expressão,
assistindo-se à disseminação de edições em diversos locais do país, com especial preponderância de Lisboa e do Porto. Ao mesmo tempo, ocorre
um notório desenvolvimento dos mecanismos de impressão e reprodução, tornando-os
bastante mais acessíveis, o que facilitou o aparecimento de diversas publicações.
Nesses tempos, os fanzines constituíam um espaço de partilha e divulgação de
trabalhos e expressões dos seus autores e em menor escala, de veículo de
intervenção cultural ou social. Estas publicações, assumiam-se como única
alternativa para muitos autores apresentarem os seus trabalhos, uma vez que o
acesso à publicação em álbum estava vedado à maior parte deles. De forma
amadora e com uma qualidade muito oscilante, iam surgindo pelo país as mais
variadas publicações que incluíam BD e alguns textos de divulgação e muito raramente
de crítica e reflexão. Na segunda metade dos anos 70, aparecem publicações como
“Estripador”, “O Evaristo”, “O Ovo”, “Prancheta”, “Vinheta”, “Gazua”, entre inúmeros
outros. Realizam-se também diversas Feiras, Salões, Festivais e Jornadas que
permitem aos editores e autores apresentar as suas publicações e contactar
directamente com o público.
Depois de algum fulgor registado nos anos 70 e 80, o
movimento fanzinista começa a decair gradualmente a partir dos anos 90, tendo
vindo a definhar no novo milénio, à semelhança do que foi acontecendo à BD mais
alternativa produzida e editada em Portugal. Os propósitos principais da edição
fanzinistica, como sejam a divulgação de trabalhos autorais, a partilha e
interação comunitária, foram sendo substituídos no quotidiano por formas de
entretenimento mais modernas, como o home-vídeo, os computadores pessoais,
consolas de jogos eletrónicos e muito especialmente pela internet. A rede
global, prometia uma conectividade alargada e a possibilidade ilimitada de
chegar facilmente a toda a gente em todo o lado. Ao invés, esta utopia foi
sendo obliterada por uma generalizada resignação melancólica e pela crescente
atomização social, onde a auto-suficiência activista se satisfaz na
artificialidade de um ecrã e respectivas caixas de comentários. Hoje em dia, os
mais jovens só comunicam através de mensagens curtas e estão soterrados numa
cultura narcisista de selfies. Lamentavelmente, as novas gerações estão a esvair
a sua energia da arena política e cultural e a aplicá-la somente nas redes
sociais para o respetivo círculo fechado de amigos.
Aqui chegados, impõe-se a questão se os fanzines fazem
algum sentido actualmente?
Quando o espectro do frio, da fome e da guerra paira
ameaçadoramente sobre milhões de pessoas, parecerá fútil escrever sobre fanzines, mas para
toda uma geração de jovens oriundos da classe trabalhadora, que não tinha
acesso à alta cultura e sem dinheiro para adquirir os originais em suporte
físico (discos, livros, filmes, etc.), a televisão pública (RTP 2), a imprensa
musical e os fanzines, foram fundamentais para a nossa formação e vivência,
pois significavam a irrupção do culturalmente novo e provocavam algum distúrbio
num quotidiano de horizontes bastante delimitados. Eram esses pequenos abalos
que permitiam sonhar que algo poderia mudar em outras áreas da vida, que talvez
as estruturas e o sistema vigente não fossem imutáveis para sempre.
Actualmente, assistimos à progressiva
desmaterialização da vida e à manipulação da informação de modo a condicionar
qualquer tentativa de pensamento crítico, caminhando para uma situação de
infertilidade imaginativa e de constante repetição de estilos e de modas, sintoma
evidente de uma cultura estagnada e completamente zombificada.
Acredito convictamente que os fanzines poderiam contribuir para insuflar a BD e a cultura com alguma vida, agregando as novas e as antigas gerações em projectos comuns e, gerando múltiplas ignições de novidade, de talento, de inconformismo e ousadia.
12 comentários:
boas!
é muito bem visto "comemorar" estes 50 anos e parabéns pela iniciativa de LEMBRAR isso numa sociedade que se esquece de tudo - eu nunca me lembrei de que poderia haver uma data "oficial" para comemorar os fanzines em Portugal. Não sou lá muito de comemorações oficiais mas entendo a importância disto. Em que mês saiu o "Árgon" para criar esse Dia Nacional do Fanzine?
As dúvidas que remetes são pertinentes e devias submeter isto para o futuro jornal da CCC, "Carne para Canhão" que 'tá a ser uma estucha produzir por falta de participação...
Dois apontamentos:
- como tudo na vida existe mutações de conceitos e formas, os zines mudaram como também as nossas vidas passaram a ter outros problemas como a questão da habitação para armazenar objectos culturais ou teres de emigrar para ter melhores condições de vida ou de realização pessoal, etc... por isso os meios digitais facilitam a produção e armazenamento de informação / criação - claro que o "barato sai caro" e alguém irá pagar essa conta mais cedo ou mais tarde - colocando de lado o objecto físico DIY, pobre e rápido de produzir na máquina de fotocópias mais perto de ti. Ao mesmo tempo, os poucos objectos que agora são produzidos fisicamente nunca antes tiveram melhor qualidade de impressão, design, cuidado e brio.
- temos de distinguir entre o fanzine de informação (ou crítica) do fanzine artístico (que publica trabalho) - ou ainda o zine misto (que alie textos sobre BD e publique trabalhos) - se no segundo caso, acho que continua a haver publicações e trabalhos com bastante interesse, sofisticados ou muito bem produzidos, no primeiro caso, é óbvio que a cultura digital assassinou o sentido crítico quando só se coloca "likes" invés de perder tempo a escrever textos como estes dois... Entre o PC e "cancelamento" ninguém é capaz de dizer publicamente que o "Pissaboy" é uma valente bosta (um exemplo ao calhas, há tanto mais para dissecar no mercado da edição de BD) de forma inteligente e não como acabei de trashar. Isto seja no velho analógico semanário Expresso seja no virtual Ler BD. Se a BD é sempre um "atraso de vida" não está em situação de exclusividade em relação a isto! Alguém na imprensa musical é capaz de escrever uma resenha de um concerto ou disco a dizer que é uma treta? E no Teatro? Artes plásticas? Talvez no cinema ainda haja umas críticas mais ferozes na imprensa escrita, mas o resto parece-me um deserto... Num mundo infinito na 'net, a crítica de seja o que for desapareceu, não admira que isto crie bolsas de resistências (a maior parte delas reacionárias) num fórum obscuro exclusivo a doidos anti-vax. Ops! Espera! Somos nós o que acabei de descrever? hahahahaha
grandes abraços da capital europeia mais porca
M
"a crítica de seja do que for desapareceu" ... faltou o "D"
Olá,
muito obrigado pelo teu excelente comentário – não conseguirei, neste espaço, replicar todos os tópicos que abordaste, mas aqui vai:
- relativamente à data de publicação do Árgon e recorrendo ao material do General Lino, aponta-se para o inicio de 1972 e teve 5 números. O Árgon era editado pelos alunos do Liceu Nacional Gil Vicente. Agora, a malta dos liceus não faz nada – não edita nem organiza nada – será por estarem somente interessados em tirar notas para a Faculdade? Ou será que é por acharem que já nada vale a pena? Ou então será porque são demasiado imaturos e infantilizados?
Quando referes a ausência generalizada de critica, concordo inteiramente contigo – isso é uma consequência do relativismo cultural e do politicamente correcto, onde tudo se equivale – nivelando o Schubert no mesmo patamar do Toy e do Quim Barreiros.
Por outro lado, a critica de cinema, com as mesmas caras de sempre, está muito formatada pela política de autores e pela formatação de um determinado tipo de gosto, mas previsivelmente, não alcançar grande sucesso – basta reparar nos filmes exibidos nas salas e os que têm audiência: - franchises do tipo Velocidade Furiosa, OO7, Star Wars, animações da Disney e Pixar, e principalmente todo o tipo de Super-Heróis…. Em suma, basicamente tudo filmes de entretenimento irrealista, carregados de efeitos especiais e destinados a um público completamente infantilizado.
Alíás, é uma tendência que se observa em outros contextos: - os dvd e os blu-ray desapareceram progressivamente do mercado desde há uns anos, restando, apenas a FNAC a comercializar. Este ano, também a FNAC decidiu liquidar definitivamente os seus stocks – e o que é que surge nos antigos escaparates dos filmes? - todo o tipo de figuras e figurinhas, bonecos Pops, canecas, peluches e toda a parafernália de merchandising dos filmes. Ou seja, subtraem-se os filmes, e substituem-se por brinquedos, para consumo de um público infantilizado.
Se encarar todo este cenário de forma bastante pessimista, faz de mim um reacionário; então, eventualmente, serei de facto, um reacionário...
Abraço amigo,
cheio d etrabalho e falta de tempo por causa da feira do livro de lisboa... gostaria de comentar tudo com mais tempo e pensamento mas não dá... aliás, parece que é uma característica dos nossos tempos, a falta de tempo.
esse tempo foi-nos roubado, seja para adultos seja às crianças - não tendo filhos mas observando pelos as dos outros, uma criança até acabar o curso da faculdade não tem tempo para nada, é só actividades extra-curriculares, etc... nada de tempo para pensar ou não fazer nada, ... creio que explique também que não se faça nada de "marginal" ou que o que se faz é para uma carreira.
bof... até breve...
M
também queria comentar que o zine colectivo desapareceu do mapa,... mas tenho de ir bulir!
bof
M
De certa forma, já comentaste o essencial quando disseste que “o futuro jornal da CCC, "Carne para Canhão" 'tá a ser uma estucha produzir por falta de participação...”
Nas condições actuais, os projectos colaborativos são muito difíceis de concretizar pelas razões apontadas no texto: atomismo social, resignação, conformismo, individualismo, infertilidade imaginativa, desencanto, e por aí fora….
Mas por tudo isso, é que é fundamental insistir e lançar a primeira carne para canhão; depois das pessoas verem o navio-almirante a navegar, muitos outros se vão juntar – só estão à espera de um sinal….
Boas!!!
Muito bom artigo de enquadramento histórico no percurso e papel dos fanzines na cultura alternativa Portuguesa.
Continuo a considerar que este meio de expressão cultural tem a maior relevância, por ser um meio verdadeiramente independente, onde o autor ou autores podem verter a sua visão sem qualquer tipo de censura editorial.
Neste momento de celebração de 50 anos dos primeiros fanzines em Portugal, acho que o tom pode ser um pouco mais positivo, não me parece que o movimento esteja tão moribundo como se possa pensar à partida; está eventualmente transformado ou em mutação. Há muitos fatores que o proporcionam, nomeadamente o perfil da sociedade que por ser diferente produz diferentes resultados.
Também ao nível do público há questões a ter em conta; há alguma saturação dos conteúdos digitais, por isso muita gente retoma a busca do objeto físico e de culto onde pode obter conteúdos diferentes e que não se encontram online, e isso joga a favor dos auto-editores.
Hoje em dia noto que se assiste a bastante produção e edição de suportes verdadeiramente independentes, com o espírito D.I.Y., o que acontece é que a estética que estamos habituados a encontrar no estilo mais underground ou punk dos zines dos anos 80/90 mudou, há mais e melhores meios de produção e também um maior cuidado no design, paginação e produção. Se se podem apontar aspetos menos bons, eu apontaria a qualidade dos conteúdos escritos.
É há relativamente pouco tempo que tenho vindo a aprofundar a minha pesquisa nesta área (desde2019) mas, desde então tenho encontrado umas boas dezenas de autores de fanzines, livros artísticos ou publicações indy em Portugal que continuam a considerar este meio o melhor para se expressarem e dar a conhecer o seu trabalho.
Poderei enumerar aqui uma boa quantidade deles se acharem pertinente.
Para todos esses resistentes um big up" desde já.
Miguel Correia
Editor do Fanzine Ultra Violenta
Olá Miguel,
muito obrigado pelo comentário e por me fazeres sentir que existem interlocutores interessados e atentos – só assim nos sentimos menos sozinhos…
Relativamente aos fanzines, o texto incide especialmente nos fanzines de banda desenhada (mas poderia ser também extensível aos fanzines sobre ficção científica e música, etc.). No que toca à ilustração, ao desenho e à fotografia, o panorama editorial será porventura mais animador…
Seria excelente se pudesses listar os fanzines que referiste para podermos situarmos melhor. Pode ser?
Um abraço,
O texto de facto refere-se ao segmento da BD, e neste, sim pode haver uma menor produção do que houve em tempos mas ainda há alguns “resistentes/insistentes”, e claro que vocês os conhecem:
O Rodolfo Mariano, que está no excelente nível que está (desde já reconhecido pela Chili com Carne) e cujo percurso começou no formato de fanzine ( com o Ruínas e o Rock Bottom).
Temos o Marco Gomes com a Cerveja Depressão, e como ele, um pessoal de Leiria muito forte na Ilustração/ Banda Desenhada mais Noir (como o Ffrio) e que se podem ver na revista Invasão
No Porto o Coletivo Artístico Bastardos, a Leonor Hungria e o SAMA (Brasileiro, mas instalado na Invicta há muitos anos).
Não podemos esquecer o José Feitor, da Imprensa Canalha (LX) que continua a produzir ao mesmo ritmo que tem produzido nos últimos anos e cuja filha lhe está a continuar as passadas com o estúdio Bancarr0ta.
Num registo mais provocador e humorístico temos o Sandro Ferreira de Tomar que continua a lançar com frequência novas edições do Olho do Cú, isto desde 2014.
Nas restantes áreas há um pouco mais de coisas novas a surgir com mais frequência.
Nos fotozines há a MP Edições, Barba ao Vento, Fotocromia, Ignarvs, sem esquecer os trabalhos deslumbrantes do Sal Nunkachov da editora Paperview e também da Ana Romana na ESAD das Caldas da Rainha (Photobox).
Nos zines de poesia/prosa há o Noé Alves da D.Flagra , O maravilhoso zine CIR.CUNS.TAN.CIAL, a Sara Franco (Bala) e o Paulo Ansiães Monteiro com os seus ensaios visuais sobre palavra e linguística.
Depois há muita coisa diversa; Em Coimbra a Editora do Tipos, Em Lisboa a Estrela Decadente e a Aos cuidados e no Porto a Merge, O Pedro SIM e a Madame Zine, uma pessoa muito criativa e ativa na publicação independente, que além de publicar promove vários eventos ligados a este mundo.
Há também o Flanzine, que tendo evoluído para uma maior qualidade gráfica, editorial e de impressão mantém no seu adn o espírito dos fanzines.
Para fechar e para não me alongar muito temos o fanzine Ultra Violenta, do qual sou editor, que é um zine coletivo artístico com uma vibe dadaista, com muita ilustração e colagem. Já vai na edição nº 22 e nele já participaram mais de 70 artistas convidados com vários registos e de diversas proveniências. O intuito principal do Ultra Violenta é promover a edição independente e livre.
Por isso acho que podemos ser poucos "mas somos bons" ;)
Miguel Correia
Tirando a Matilde Feitor e Marco Gomes toda esta produção que indicas é malta para cima dos 30 anos ou mais...
Ah, isso sim.
O pessoal da Merge, do Coletivo Artístico Bastardos e da Circunstancial devem ser os mais novos, mas se não tiverem os 30 também devem estar lá perto.
Já o Fotocromia é feito pelos alunos de fotografia da Escola Artística Soares dos Reis no Porto e a Photobox pelo pessoal do curso de design das Caldas da Rainha.
Mas na generalidade, sim, é pessoal que passou pelo fenómeno zine na adolescência e o mantém vivo na atualidade.
Miguel Correia
pois, parece um bocado peter pan, o zine que não fizeste que eras puto, tás a fazer agora com idade para ter juízo... nada de contra mas reflecte os tempos apocalípticos que o erradiador emana...
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