E de repente... (relatório 2022 sobre zines e edição independente)
Iá! Voltou tudo ao "normal"... mas com vingança! Outra vez as ruas cheias de turistas borregos a comerem no chão a comida que compraram no Pingo Doce - até os porcos no curral tem mais dignidade. Talões de papel enormes. Plástico por todo o lado e em todos os produtos. Parabéns, mundo da fantasia e afins. Tudo voltou ao normal e para pior. Espera, houve um "up-grade"!! As tão procuradas máscaras de 2020 agora esvoaçam em arbustos, na rua ou no raio que o parta... Vão se foder!
Comemorações?
Um associado nosso, o Erradiador, lembrou-se de que este seria o ano para comemorar os 50 de existência de fanzines de BD em Portugal. não sei se os fanzines quererão um reconhecimento assim institucional mas mesmo que o quisessem deparam-se com dois problemas, o primeiro é que as instituições que tem acervos de fanzines em 2022 ou estavam em obras (Bedeteca de Lisboa) ou em estado Zombie (a Fanzinoteca Geraldes Lino na Amadora funciona? Nunca se ouve falar dela!) mas o problema mais grave é que na realidade já não há fanzines de BD em Portugal. Como assim?
O problema já vem antes da crise do Covid, poucos serão os títulos que se apresentam como uma publicação colectiva. Basta verificar isso nos nomes dos participantes das feiras "indies", é só nomes próprios de "artistas", nada de Olho do Cu (uma excepção à regra e que continua a bombar!) ou algum nome de um projecto editorial. De acordo com este individualismo e com a crise da falta de eventos durante os dois anos da pandemia, parece que ainda há menos publicações físicas do que antes.
Fizeram-se 30 anos do Mesinha de Cabeceira mas como é de BD não teve direito a livro de memórias ou festinhas como aconteceu com a SPH / Thisco. Ninguém quer saber de BD neste país... Seja como for, em 2021 tinha-me decidido de voltar às raízes das tiragens reduzidas (80 a 100 exemplares) para retirar trabalhos das gavetas de malta que já teria idade para ter juízo ou os verdinhos da cena. Destaco os últimos que foram boas lufadas de ar fresco: Alexandra Saldanha, Ângela Cardinhos, Matilde Basto, Luís Barreto e Rodrigo Villalba. Espero voltar a vê-los noutras aventuras agora que já aprenderam a editar!A Oficina Arara também fez "10 + 2 anos" com um livro cheio de luxo mas com pouco interesse, uma oportunidade perdida para mostrar documentos dos seus eventos, viagens, produção e exposições. Entraram textos mas tudo pouco explicativo do que é (realmente) ou que foi este colectivo gráfico. Se esperam que alguém edite uma monografia quando forem velhinhos, é melhor esquecer, embora tenha sido um ano fora do comum na edição de obras de referência. Geralmente é neste relatório que se percebe que é raríssimo haver publicações sobre BD, e muito menos no sector privado porque "não se vendem", tendo de ser as instituições a editar catálogos para solidificar a História da BD portuguesa. Só que já nem isso existe porque desde 2015 que o Festival da Amadora não o faz, por exemplo.
Em 2022 saiu pela Universidade de Leuven (Bélgica) Visualising Small Traumas : Contemporary Portuguese Comics at the Intersection of Everyday Trauma, um ensaio sobre BD portuguesa contemporânea e o trauma do quotidiano, tese de doutoramento de Pedro Moura. Logo a seguir The Reading Gaze : "My" comics de Domingos Isabelinho - finalmente um livro deste lúcido crítico! Ambos livros foram redigidos em inglês, um porque é o Esperanto da academia, o outro porque ninguém quer saber de BD em Portugal - e é verdade que a grande maioria das vendas foram para pessoas dos EUA, Inglaterra, Itália, etc... Houve três livros ligados à "SHeITa" que foi um esbanjar de dinheiro da UE e escritos por cromos velhos colecionadores de "bêdê". Um dos livros faz revisionismo do que já estava feito pela Bedeteca de Lisboa, outro "homenageando" o passado de forma bacoca e por fim outro a entrevistar os autores de BD portugueses menos interessantes de sempre. Haja dinheiro...
Mas houve mais, uma entrevista a Robert Crumb e Aline Kominsky-Crumb (talvez a última pois a artista iria falecer no final do ano) na revista do Expresso, uma entrevista "cinekomix" impressa a Will Eisner (1917-2005) por Edgar Pêra na revista Argumento e houve vários artigos sobre Artur Varela (1937-2017) na revista Flauta de Luz.
Importante referir a revista sobre ilustração Aguça que também tem um bocado de BD nas suas páginas, creio que é a primeira vez que surge um projecto em Portugal deste género.
Outra situação inédita e ainda o Pêra, foram exibidas na grande tela, no Doc Lisboa, três entrevistas "Cinekomix" em que encontramos José Carlos Fernandes e o finlandês Tommi Musturi.
Outro inédito e que tinha potencial se não fosse dar em esquemas de flatulência, buzinadelas e outros efeitos circenses, o programa de rádio Pranchas e Balões que promove mediocridade sempre que pode na Antena 1.
Houve um volume dedicada à obra gráfica de Mário Henrique-Leiria (1923-80) na colecção dedicada à sua obra completa, pela E-Primatur, nela encontramos mais uma BDs deste escritor surrealista. Sem ser BD mas obrigatório para qualquer desenhador ou editor de BD eis que apareceu um Compêndio Cantiano, pela Barbara Says..., ou seja, outro monográfico dedicado ao obscuro-mas-brilhante Paulo de Cantos (1892-1979).
E por fim, um documento importantíssimo para quem não percebeu a excelência do trabalho na BD pela parte de João Paulo Cotrim (1965-2021): Foi quase um prazer. Este livro reúne um conjunto de textos de Cotrim nas várias áreas visuais que se mexia / incentivava / pesquisava / publicava, ou seja, um animado bordel de cartoon, ilustração, BD, pintura, filme de animação e mais qualquer coisa. De importância máxima no livro são os verbetes redigidos pelo designer Jorge Silva, para quem não teve idade (ou que teve mas foi burro) de conhecer a revista Lx Comics e o catálogo ou a programação da Bedeteca de Lisboa.
Portuguese Contemporary Comics
Moi, HELLsínquia!! |
Com o regresso dos festivais internacionais, o David Campos foi ao Festival de Varsóvia, Ana Margarida Matos ao Festival de Hamburgo, Gonçalo Duarte, Rui Moura e André Pereira ao Crack (Roma), onde também estiveram a Oficina Arara, que por sua vez tiveram uma exposição dos seus 12 anos em digressão por Marselha e Belgrado.
Ana Margarida Matos participou no número comemorativo da revista eslovena Stripburger (30 anos!), Miguel Santos na sueca C'est Bon, Dileydi Florez e Mao na letã Kuš!, que também editou os mini-kuš da Joana Mosi e Pedro Burgos. Ana Maçã e Simão Simões participaram no fanzine Amorcito #3 da Galiza.
Em língua castelhana saíram os livros Abolição do Trabalho de Bob Black e Bruno Borges em Espanha, Terminal Tower de Manuel João Neto e André Coelho na Colómbia e Família de Júlia Barata na Argentina e Espanha - para quando uma edição portuguesa deste último?
Turismo rápido
Chloé Wary passou pelo Festival de Beja, na Amadora nem me lembra quem foi lá mas pelo menos foi menos festa da mangueira do que no ano passado! Mais interessante e como aconteceu nos "anos covid" foi a Tinta nos Nervos que apostou em exposições e presenças de artistas estrangeiros, em 2022 visitaram o galego Oscar Raña e o australiano Michael Fikaris.
Houve relâmpagos porque é malta do "rock'n'roll"! Passaram a 180 à hora as bandas Los Caballos de Düsseldorf (com Olaf Ladousse) por Lisboa e os Lightning Bolt (com Brian Chippendale) por Braga e Lisboa. Alguém pediu autógrafos a estes músicos-artistas?
Eventos públicos
Foi o regresso à normalidade: duas Raias e um M.A.L. em Lisboa, e um Perímetro no Porto.
Fora do baralho, aconteceu uma "BD 24h" na "Nova" (Carcavelos) organizada por dois autores estrangeiros residentes em Portugal, o turco Utku Yavaşça e o italiano Nicola Lonzi. Foram parar aquela escola de porcos capitalistas por só terem encontrado este sítio como um espaço aberto 24h - os tempos mudaram mesmo, porque em 1997, havia o espaço Ágora onde fiz também esta "performance" com o Rafael Gouveia... Para a próxima a ver se é no Desterro!!
O projecto Story Tellers, que está num parque em Benfica, disponibiliza BDs através de um "QR code", sendo que na selecção de Inverno tiveram conteúdo inédito envolvendo novos artistas, a saber: Alexandra Saldanha, Ângela Cardinhos, Inês Louro, Luís Barreto, Marco Gomes, Mina Anguelova, Rodolfo Mariano e Tomás Ribeiro.
O evento mais sentimental foi com certeza o EnCOTRIM na Livraria Verney (Oeiras) mas com um programa completo para todos envolta da memória de João Paulo Cotrim que nos deixou em 2021.
De referir ainda exposições várias, dentro dos festivais sobressaíram o Rodolfo Mariano e o inglês, residente em Serpa, Andrew Smith em Beja e o Nunsky na Amadora. O resto foi aquele deserto "bedófilo" com falta de programação para os tempos que vivemos. Para encontrar contemporaneidade é preciso procurar outras paragens como na Sirigaita onde foi comemorado os 10 anos da série Mapa Borrado, ou seja, as BDs de José Smith Vargas no jornal Mapa; ou ver um trabalho do João Sobral no Teatro Luís de Camões, a explicar o Dinheiro às crianças. Na "ilustração" tanto houve uma força 100% DIY com A fome e outras frieiras de José Feitor no Espaço Correntes, algo intermédio com Miguel Carneiro na Galeria Verão e a onda institucional com Mattia Denisse na Culturgest.
Por fim, e o que interessa, as edições!
Francisco Sousa Lobo acabou a publicação Palácio, de forma bizarra, já sem ser ele a editar mas a Tinta nos Nervos, com problemas técnicos de impressão e a um preço inexplicável - embora já toda a gente sabe que o papel subiu de preço, ou se preferirem tudo aumentou de preço como é típico nas crises capitalistas, onde os porcos fingem escassez e provocam especulação.
Em compensação, também inexplicável mas de tão barata que é e para o livro que é, Na Prisão do japonês Kazuichi Hanawa, pela Sendai. Leitura obrigatória para quem sonha com um Japão "kiduxo"! Num mercado saturado de merda, são editoras assim que fazem diferença. A construção do catálogo desta editora está a ser fascinante, sendo sempre uma surpresa feliz cada vez que é anunciado um novo título. Outro com a mesma pinta de surpresa será a Magma Bruta que embora esteja no nível da edição limitada - devido à impressão em riografia. Este projecto entretanto instalou-se em Portugal e publicou o primeiro capítulo de Dew Beaded Fingers - que há de ser um livro maior - da Amanda Baeza, belo regresso!
O problema do mercado de BD português não é do lixo comercial per se, o problema é esse lixo nem é o mais óbvio. Saíram e saem todos os meses, álbuns inexplicáveis que lembra os anos 80: BD pedagógicas ou adaptações literárias e históricas... que estranho, com a Wikipedia acho que podemos saber quem foram os bastardos do Mao ou do Churchill. Precisamos de ler BD-sem-sal sobre eles? Outra situação do mercado de 2022, bués de Mangas de 5ª divisão para enganar os putos. Que triste...
E depois, em Portugal, está tudo ainda em aberto, continua-se sem edições de obras maiores ou de artistas de alta craveira. A extinta colecção Novela Gráfica (que de ano para ano ia piorando), fez um bom trabalho ao finalmente publicar, em livro, artistas como Max, Baudoin, Crumb ou Seth. Mas porque não a Julie Doucet que ganhou em 2022 o prémio principal do Festival de Angoulême? Não, nem pensarm preferiram publicar duas vezes o idiota do Bastien Vivés, que foi cancelado pelo mesmo certame,... Fabuloso não?
Há sempre livros curiosos apesar de tudo, ou seja, nem tudo é estúpido. Com orgulho digo que ainda bem que existe a Chili Com Carne que é capaz de editar peças delicadas compiladas em Sinapses do Ivo Puiupo, seja, um tijolo de 300 páginas sobre o Porto "gógó" dos anos 90 como o Companheiros da Penumbra de Nunsky - o grande regresso de 2022. Também houve novos livros de Marco Mendes (pela Turbina), Diniz Conefrey (Quarto de Jade), Miguel Rocha, do espanhol Miguel Angel Martin e duas reedições, uma de Max Ernst (Sistema Solar) e o Palestina de Joe Sacco, pela Tigre de Papel, que é um desastre gráfico. Mais uma vez, haja dinheiro...Houve dois bons números da colecção Toupeira da Bedeteca de Beja, as já referidas surpresas, Andrew Smith e Rodolfo Mariano. Regressou O Filme da Minha Vida com um de António Jorge Gonçalves, o zine Invasão, ligado ao Marco Gomes que auto-editou um livro, Lethal Dose com BDs que adaptam letras e bandas Metal / Hardcore. Houve Opuntias Books à barda e o André Pereira fez um zine, 5-color Good Stuff.
Iá!
E como sempre são os "indies" os inovadores, estando a Inteligência Artificial na boca do povo, eis que foi um ano de experiências. Dois argumentistas usaram a coisa, Pedro Moura com uma curta na revista Cais e Mário Freitas com um "comic-book", A Polaroid em branco. A artista Hetamoé usou na referida Kuti e a Chili Com Carne ajudou na edição do monstruoso Fastwalkers (imagem ao lado) de Ilan Manouach.
RIP
Justin Green, o pai da autobiografia. Miguel Gallardo, vida loca na democracia espanhola. A referida Aline e Diane Noomin, mulheres corajosas do underground comix. Kevin O'Neill, um gozão! José Ruy, um senhor que marca o fim de uma Era da BD portuguesa.
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