Anarquismo para melómanos : a propósito de “ ‘A’ maiúsculo com círculo à volta” de Rui Eduardo Paes
O ofício de escrever é uma tarefa ingrata, tal como a de tocar música, a de criar qualquer tipo de arte em geral ou até a de falar sobre quem escreve.
Escrever pode ser um acto frustrante por ter sempre um carácter subjectivo. Escrever sobre arte ainda o é mais, já que a criação artística é sempre uma tarefa espiritual – pragmaticamente nada traz de utilitário; apenas nos ajuda a sonhar ou a construir pensamento (o que já não é pouco).
Escrever sobre arte pode ser também um acto de risco: se por um lado provoca o bem-estar, por outro consegue levar a estados de ansiedade e desconforto no criador da arte e no próprio leitor. O centro da questão é ser-se compreendido ou não. Tanto para o artista como para o crítico é sempre desgastante tentar fazer valer a sua verdade.
A escrita do Rui Eduardo Paes vai ainda mais além nestes argumentos porque estabelece sempre cruzamentos entre a arte e a vida. No fundo o que ele escreve são textos sociológicos sobre música. É uma escrita pedagógica, dado que traz inúmeros ensinamentos, e ao mesmo tempo revela-se vanguardista nessa pedagogia por não assentar em dogmas mas sim nas aprendizagens, no percurso que o escritor fez na apreensão da sua verdade e na construção da sua afirmação. E por isso é uma escrita sexy, já que mostra as entranhas (a forma como se adquirem os conhecimentos) e também porque aponta caminhos. É uma escrita sensual (por vezes promíscua ou até barroca) porque existe sempre envolta nalgum mistério (como uma névoa de ideias) e emaranhada em combinações de factores diversos. É uma escrita insinuante que por vezes nos vai chegando como que distraidamente mas que nos consegue depois agarrar com uma grande energia.
Ao ler o REP, mais do que ficar documentado, o leitor apropria-se de todo um universo de imprevistos e agitações. Ninguém mais se lembraria de construir aqueles desconcertantes cruzamentos entre coisas tão distanciadas como por exemplo a arte da relojoaria e a música de Ernesto Rodrigues, ou as mochilas e o violoncelo de Daniel Levin, ou o trompetista Nate Wooley e um pontapé no rabo, ou os berlindes e a microtonalidade, ou ainda a música do CCV Wind3 e certos problemas de calcanhares e pés…
Sendo uma escrita carregada de referências e de algum humor, a sua estratégia de construção pode considerar-se musical (vá lá saber-se porquê). O REP escreve sobre música como se fizesse música – compõe textos como se fossem sonatas, suites, baladas. A sua escrita desenvolve-se como uma verdadeira progressão harmónica de ideias ou até mesmo como um contraponto de texturas tímbricas que são as suas metáforas.
ilustração de Jucifer para o livro |
Trata-se pois de um conjunto alargado de temáticas que ajuda o leitor a rever a sua própria postura ideológica e que não deixa indiferente o artista, levando-o a reflectir sobre a sua atitude criativa. E por isto apenas já valeria a pena.
Esperemos portanto por novas apostas do REP que nos possam continuar a atrair e surpreender.
- Intervenção de Paulo Chagas no lançamento do livro na Trem Azul
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