Co.Mix (relatório 2025 das independências)
Foi bonito de se ver. O governo PSD fez merda com as Bolsas de Criação Literária, nomeadamente com as de BD e Ilustração para a Infância. Ao contrário do que aconteceu quando em o PSD deu cabo delas em 2003, desta vez houve uma reação da parte dos vários agentes da cena. Foi escrita uma carta aberta à Ministra da Cultura com centenas de assinaturas de autores, artistas, editores, formadores, curadores, jornalistas e quejandos, o que nitidamente fez o Governo mudar de atitude, voltando atrás, remexendo tudo para ficar mais ou menos igual, desorientando as instituições subalternas (DGLAB) e ainda poupou uns cobres - uma vez que as bolsas em 2025 não foram atribuídas devido às referidas trapalhadas. Esta gente da política sabe que a Cultura é importante para o "show off" do capital simbólico, não haja ilusões sobre isso, talvez em 2003 não sabiam disso embora tenha visto uma vez o "Cherne" numa premiere do Manoel de Oliveira no CCB, sabe-se lá porquê...
Curioso foi quem não assinou a tal carta: Catarina Valente - directora do maior certame de BD no país sendo que maior não quer dizer melhor - e Luís Louro que comemorou 40 anos de carreira, tendo sido este ano galardoado com várias medalhinhas do aparelho - é um autor perfeito para o sistema, especialmente de Direita, que quer espectáculo e inconsciência política. Realço um facto para não diabolizar os direitinhas em exclusivo, afinal a "gerigonça de Esquerda" não mexeu uma palha para que Fernando Relvas não morresse na miséria...
É claro que o Louro nunca se sujeitou às Bolsas porque exige unhas que ele não tem, tudo bem, desculpa-se o idiotita, agora a Directora da BD Amadora estar ausente só mostra que, ou é uma menina bem comportada ou é ignorante - ou as duas coisas, porque não? Ambas personalidades gostam de se distanciar da maralha, armados em aristocratas da treta e são bons exemplos das contradições da BD portuguesa. Louro vende pouco mais do que qualquer outro autor português de BD (ou até menos se pensarmos que a Chili Com Carne tem reeditado vários títulos nos últimos anos) e a BD Amadora desde a saída de seu director Nelson Dona tem piorado na programação e no relacionamento com os actores da cena da BD. Apesar disso, ambos sabem usar os seus passados históricos para alavancar facilmente os seus nomes neste meio em que falta referência, reflexão e crítica. Ambos estão cada vez mais distantes do que se escreve nos jornais - como foi a capa do Ílpsilon / Público de 26 de Setembro - ou na TV - programa Pessoas que Desenham a Liberdade (RTP 2) de António Jorge Gonçalves que entrevistou vários artistas gráficos como José Feitor, Ana Margarida Matos, Ana Biscaia, João Fazenda, Amanda Baeza,... - ou do que se mostra em eventos como o WC/BD (que acabou este ano), Story Tellers, Flexágono (Festival Fólio, Óbidos) ou a Miragem que foi sem dúvida o evento do ano em relação à BD!
Comecemos por aí, a Miragem foi mais do que um mero mercado de edições independentes - que aliás proliferam pelo país: Autónoma (Almada), FLIFA, Raia, Parangona (Lisboa), Feira da Alegria, Mercado do Contra, Perímetro (Porto), Festival de BD e Fanzines de Alpiarça, Feira do Livro de Arte (Coimbra) e FLOP (Açores). Teve workshops, conversas incisivas (invés das punheteiras que acontecem nos festivais de BD), apresentou espetáculos que misturavam desenho e música - sem ser aquelas xaropadas dos "concertos desenhados" -, e apresentou a exposição Ponto Ponto Ponto que ultrapassava a mera prancha na parede. Durante dois dias de Maio, sob a batuta do colectivo A Goteira, na Biblioteca de Marvila, a civilização reapareceu na BD portuguesa. Uma ilusão, claro, antes e depois, a merda foi omnipresente.
Ainda assim o Festival de Beja recebeu Ana Margarida Matos e Amanda Baeza (finalmente!), a Tinta nos Nervos teve exposições de Miguel Rocha, Diniz Conefrey, Alexandre Piçarra e Beatriz Brajal - estes dois últimos no âmbito dos concursos Toma lá 500 paus e faz uma BD! de 2024 e 2025 respectivamente. A Bedeteca do Porto organizou a colectiva Próximos Capítulos com trabalhos de Carlos Pinheiro, Daniel Silvestre, Marco Mendes, Nuno Sousa e Sofia Neto.
Foi um ano pobre na internacionalização mas Ana Margarida Matos, Hetamoé e Ivo Puiupo participaram na antologia letã š! e Mao fez um mini kuš!. Matos e Bruno Borges participaram na revista eslovena Stripburger - aliás, o Bruno já faz parte da casa! O livro Andrómeda do Zé Burnay teve uma edição em Espanha pela Mondo Cane e o Mangusto de Joana Mosi voltou ao Canadá mas agora em língua inglesa - o livro originalmente apareceu primeiro lá em francês e em 2023. Também as participações em eventos internacionais foram mais reduzidos mas a Chili Com Carne esteve no Crack (salvo seja) em Roma e Viñetas desde o Atlântico n'A Corunha, Francisco Sousa Lobo na Feira do Livro de Leipzig, Burnay no Graf (Barcelona), Gonçalo Duarte, André Pereira e Bia Kosta no Autobán (A Corunha) e Ana Margarida esteve por Bruxelas na BD Comic Strip e na residência do Camões (salvo seja). Pedro Moura também foi ao Texas num projecto universitário com a š!, que ajudou a coordenar.
O contrário também é verdade. Tirando a presença do espanhol Miguel Ángel Martin na LouriBD e do grego-belga Ilan Manouach na Casa do Comum, não houve mais ninguém estrangeiro interessante para nos visitar, a não ser versões baratas da Marjane Satrapi e outros sucedâneos que se publicam neste mercado sem rasgo e amorfo que até já enjoa de tanto livro do Junji Ito. Finalmente publicou-se o Alack Sinner de Muñoz & Sampayo - se ignoramos o jornal Lobo Mau em... 1979 - pela Devir, que reeditou também o Silêncio de Didier Còmes (1942-2013) outra vez a preto e branco e é assim que deve ser impresso! Na colecção 25 Imagens a Levoir e o Público assaltaram à descarada as bolsas dos leitores, apesar dos bons nomes dos participantes: Tardi, Thomas Ott, Nina Bunjevac e Joe Pinelli - lembram-se quando a Polvo era boa em... 2002? Sobra Flash Point de Imai Irata, uma parceria da Chili Com Carne e Sendai, um autor japonês com teor político, como tal, desconhecido e desafiante. Ficámos à espera do HP de Guido Buzzelli (1927-92) com argumento de Alexis Kostandi, pela Escorpião Azul, anunciado em Março mas que só sairá agora em Janeiro de 2026.
Dentro do atrasos na Chili somos culpados de não cumprir as datas redondas, a reedição da comemoração dos dez anos da edição original da Plana Press (e finalmente em português) de Propaganda de Joana Estrela não foi em 2024 mas este ano. Tal como reedição de Mr. Burroughs de David Soares e Pedro Nora não foi feita este ano - para comemorar os 25 anos da edição original da Círculo de Abuso - mas sairá em 2026. A nível de reedições ainda de assinalar a colecção da série Pós-Tugal de Diogo Barros, em formato zine auto-editado - e aproveitando a deixa, houve uma nova página da série n'A Batalha : Jornal de Expressão Anarquista.
Soares regressou com desenhos de Sónia Oliveira com o livro Atrahasis, pela Kingpin,tal como a revista Umbra (OK boomer!), o projecto Magma Bruta com How to kiss a crying man da ex-jugoslava residente no Canadá Andrea Laukic, o "Gato Mariano" aos zines (para comemorar 10 anos de existência), Filipe Felizardo com o Bestiário dos Rios e Sim Mau com o zine Super Mum. Continuou a colecção O Filme da Minha Vida, o jornal Carne Para Canhão e os zines Mesinha de Cabeceira e Olho do Cu. Começou o zine Enfarta-Brutos sob batuta de Tetrateles. Não sendo BD, é de se referir sempre as gráficas Imprensa Canalha, Noturno Azul e Opuntia Books. Destaques para as edições de autor de Pats - especialmente o título Sortido - e claro o Rei da BD Rudolfo da Silva que fez uma obra-prima intitulada Fusão Dimensional na sua Palpable Press, e que trata da gunaficação da realidade. É o livro do ano!!! É por isso que este "post" abre com a imagem da capa do Fusão, dah!
Giro foi falar com a Pats na Autónoma, em que no seu mini-zine Eye-volution publica uma BD-ensaio sobre o seu estilo gráfico. Estava sem óculos quando estava a comprar o zine e vi algures numa vinheta referências aos grandes monstros da BOA BD: Julie Doucet, Robert Crumb, Lynda Barry, Jim Woodring, e...
- Espera não estou a ver bem este, quem é este?
- Rory Hayes...
- O quê? [além de começar a ficar pitosga também começo a ficar surdo ou não perceber inglês, cóf cóf cóf]
- Rory Hayes!
- Ah!!!!!! Mas... isto são tudo excelentes referências!! Como conheces esta gente toda? Os teus pais tinham uma boa "bedeteca" em casa?
- Não, descobri na 'net...
- A sério!? Parabéns! Tiveste uma sorte no teu algoritmo!!!
"Sorte"! Num país em que as editoras não publicam livros de referência - ou se publicam é vómito absoluto como se viu com os livros da Escorpião e Polvo deste ano (sobre a carreira do Louro, as leituras e escritas inócuas do evangelista Pedro Cleto e algo sobre da série Astérix relacionado com Portugal, WTF!?) - alguém conseguir "sair da linha" e encontrar os verdadeiros e grandes artistas que também raramente se publicam cá é mesmo um "random" do caneco! Esta autora não ter ficado nas "mangacadas" ou nos "comics" dos fachos gringos, é mesmo algo de agradecer à entidade divina da "Sorte"! Resta saber o que Pats irá fazer com este maná de informação de futuro, se conseguirá alguma vez algo poderoso e original. O Sortido, colectânea de comix curtos, aponta já para aí. Que ela invista mais e melhor em 2026 é tudo o que lhe peço!
Fechando aqui a secção da referência: a Agenda Cultural do Porto deu tempo de antena ao Rudolfo e Goteira num especial BD (melhor que o paspalho do Gross na Agenda de Lisboa em 2021), reeditou-se o meu texto-metade-de-livro Punk Comix com actualizações e foi feita uma mostra no Festival de Alpiarça, editou-se também um texto da minha intervenção sobre BD do BIG de 2023 no catálogo deste ano (que espero a quem o ler lhe ajude a encontrar novos caminhos na BD), Mosi foi entrevistada no sítio em linha inglês Broken Frontier, publicam-se textos e resenhas no jornal Carne Para Canhão, continua o trabalho de recuperação da imprensa underground nacional no blogue My Nation Underground e por fim houve umas entrevistas em linha com Rodolfo Mariano (por causa d'O Filme da Minha Vida) e Diniz Conefrey por causa da exposição retrospectiva na BD Amadora, curada por António Jorge Gonçalves, na Galeria Artur Bual. Foi o ano Conefrey sem dúvida, ainda se acrescenta mais duas exposições, uma Lisboa na já referida Tinta nos Nervos e outra na Bedeteca do Porto, ambas no âmbito do seu último livro Estância do Sino Coberto, pela Quarto de Jade. Uma verdadeira comemoração de carreira que não merece medalhas histéricas mas serenidade artística.
Por fim, os que desapareceram em 2025. Logo em Janeiro faleceu Arlindo Fagundes, figura mais conhecida pela olaria ou pela ilustração, no entanto foi dos poucos autores portugueses a publicar um livro de BD nos anos 80 e talvez o único a abordar temas contemporâneos ou sobre a realidade portuguesa em formato de livro - claro que havia mais autores, como Relvas, com estes temas mas eram publicados nos jornais (que se deitam fora depois da leitura) ou nos fanzines (difíceis de encontrar). Era um Comunista convicto, não teve direito a condecorações, embora a Biblioteca Municipal de Alcântara tenha feito uma boa exposição retrospectiva da sua obra, entre Maio e Junho. Faleceram autores de peso como norte-americano Jules Feiffer - que mudou a escrita da BD - e egípcio-francês Édika - um badalhoco de peso. Menos conhecido e mais gráfico que narrativo, também faleceu o francês Y5/P5 que influenciou a malta d'A Vaca que veio do Espaço nos anos 80 quando passou por Lisboa. Longe da BD mas que puserem os seus dedos uma vez ou outra nela, morreu o realizador David Lynch e o pintor Eduardo Batarda, cujos respectivos cão raivoso e "pinguim cego" ainda são monumentos por tratar. O jazzman e amigo Sei Miguel também nos deixou. Não fez BD mas algumas imagens que queriam ser isso, publicadas em 2017 pelo Homem do Saco / Marmita Gigante, sobretudo mostrou que gostar de BD é saber ser exigente e crítico, coisa que os agentes que trabalham na cena não o são...
Que 2026 seja melhor! Bom Ano Novo!
Marcos Farrajota
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| desenho de Pats in Eye-volution |






































