quinta-feira, 9 de maio de 2019

TRIP #10 portugal spleen special


Sai este fim-de-semana no TCAF o número 10 da revista TRIP, do Canadá, que inclui um dossier especial "Portugal" com BDs inéditas de vários artistas, a saber: Gonçalo Duarte, Francisco Sousa Lobo, Cátia Serrão, Mariana Pita, Tiago Baptista, Hétamoé, Daniel Lima, Bruno Borges e Xavier Almeida

A capa é de José Feitor e a coordenação do dossier ficou a cargo de Marcos FarrajotaSara Figueiredo Costa, esta última escreveu também este texto introdutório: 


            
A ideia de uma unidade nacional continua a alimentar ilusões. Em Portugal, quando queremos falar de nós a quem não nasceu ou não vive cá, temos os oceanos, a expansão marítima, o fado, o futebol... os mesmos temas de sempre, pisados e repisados para melhor se adaptarem a uma narrativa onde somos sempre heróis, mesmo que em pequena escala, sonhadores, melancólicos e aventureiros. Falamos da expansão marítima, mas esquecemos a colonização e os escravizados que daí resultaram – às vezes falamos disso, mas sempre afirmando que “a nossa colonização foi mais benévola do que outras”, como se medir a crueldade e a opressão fosse um bom modo de olhar para o passado. Falamos do fado como se não houvesse outras expressões musicais, artísticas, a marcarem o nosso percurso comum. Falamos, sobretudo, de uma história cristalizada numa certa ideia de grandeza cruzada com falsa modéstia e andamos a falar nisso há demasiado tempo.
            
Quando começámos a pensar numa antologia de autores de banda desenhada portugueses, preferimos alterar o ângulo do olhar. Ver outras coisas, pensar de outra forma, questionar mais do que enaltecer. E procurar gente que quisesse assumir essa liberdade de olhar. Esta não é, por isso, uma antologia institucional, preocupada com a suposta representatividade dos autores incluídos ao nível do estilo, do reconhecimento ou da frequência com que publicam relativamente à produção portuguesa de banda desenhada. Ainda que aqui se incluam autores e autoras que seguramente integrariam uma antologia como essa, o que pretendemos, acima de tudo, foi reunir um conjunto de autores contemporâneos de banda desenhada que respondessem a esta ideia de um certo ar do tempo. Essa era a contemporaneidade que almejávamos alcançar, um olhar para aquilo a que Charles Baudelaire, na Paris do século XIX, definiu como spleen, a mistura indefinível de temas, emoções, dúvidas e pesadelos capaz de capturar o espírito de um tempo. E também de um lugar.

Curiosamente, spleen, em inglês, significa “baço”, um órgão que não será o primeiro a vir-nos à ideia quando pensamos no corpo humano mas que, ainda assim, é fundamental para a produção de novas células e para a eliminação das velhas. Foi também isso que quisemos fazer. Baudelaire está morto há muito mais de um século, os cafés sombrios onde se traficavam livros, drogas ou ilusões foram substituídos por estabelecimentos gourmet e Lisboa nunca foi Paris... Ainda assim, o spleen permanece como um bom conceito para lermos as cidades e a sua respiração, uma espécie de microscópio por onde observar o tempo e o lugar.
            
O tempo é agora e o lugar é Portugal. Temos uma meteorologia invejada, muitos turistas, companhias low-cost, morangos no Inverno e toda a espécie de melhorias tecnológicas inimagináveis há uma ou duas décadas. Depois da Revolução dos Cravos, a 25 Abril de 1974, passámos a ter democracia, coisa que por vezes parecemos esquecer. Com a democracia vieram as condições sanitárias que faltavam em muitos lugares, a literacia, o acesso à saúde e à educação, os direitos que a ditadura negou durante décadas. Ainda assim, não estamos livres de problemas, tragédias e acidentes, como as centenas de mortos nos incêndios de Verão, a disfuncionalidade do sistema nacional de saúde, o racismo estrutural numa sociedade onde continuamos a achar que há pessoas que não merecem viver aqui, o facto de termos canais televisivos que podem dedicar quase uma hora às notícias do futebol e apenas um ou dois minutos à guerra na Síria, por exemplo. Talvez devêssemos pensar mais na nossa vida, e no modo como a vivemos em comunidade, em vez de nos dedicarmos a caçar unicórnios... E de que unicórnios falamos? Entre morangos no Inverno e juízes machistas a quem não parece mal que uma mulher adúltera seja vítima de violência doméstica, temos de tudo. É capaz de ser este o nosso spleen, cheio de sonhos de grandeza nas Eurovisões e nas Copas do Mundo e cheio de gente expulsa da casa onde sempre morou para alimentar a máquina infernal da especulação imobiliária. Umas vezes há coisas bonitas no meio da tempestade, claro, outras não é fácil respirar. Para reflectir sobre o que nos rodeia, aqui e agora, desafiámos dez artistas e demos-lhes temas que nos pareceram apropriados à sua obra, ou pela familiaridade, ou pelo desafio.
            
Até aos anos 90 do século passado, o mercado editorial de banda desenhada em Portugal era preenchido sobretudo pela publicação de álbuns oriundos do eixo franco-belga, alguma produção nacional muito associada aos temas históricos e à narrativa de aventuras (herdeira do registo de publicações que, décadas antes, tiveram sucesso entre os leitores, como O Mosquito, fundada em 1936 e activa até 1986, ou a Cavaleiro Andante, publicada entre 1952 e 1962) e trabalhos pontuais que não se inseriam em nenhum dos registos anteriores. Houve momentos de excepção, como o protagonizado pela revista Visão (entre Abril de 1975  e Maio de 1976), que congregou autores cujo discurso procurava pensar a banda desenhada, experimentar dentro e fora das suas possíveis fronteiras e trabalhar em direcções não limitadas pelo registo juvenil, mas não foram suficientes para tornar abrangente e múltipla a percepção do público e as intenções do mercado.
            
Durante a década de 1990, a percepção da banda desenhada como uma linguagem destinada às leituras juvenis ou nostálgicas (quando não como um género, facto tão decorrente do desconhecimento como da limitação de registos editados) altera-se, ainda que ligeiramente. O crescimento do mercado editorial, com o consequente aumento de canais de distribuição e colocação de livros, beneficiou a banda desenhada, permitindo que livros com registos mais experimentais encontrassem o seu espaço nas livrarias, agora atentas a outros modos de trabalhar a linguagem da banda desenhada. Por outro lado, os espaços de divulgação e exposição beneficiaram de uma evolução no que toca à diversidade, mantendo-se festivais como o da Amadora, onde a presença da banda desenhada de vocação receptiva mais massiva sempre marcou presença, acompanhada de exibições pontuais de trabalhos e autores exteriores ao mainstream franco-belga e norte-americano, mas surgindo outros, como o Salão Internacional de Banda Desenhada do Porto e o Salão Lisboa de Ilustração e Banda Desenhada, fundamentais para a criação de um público que não se limitava aos fãs de banda desenhada, mas que se compunha igualmente por interessados pelas áreas da literatura, das artes visuais, do cinema de autor... A recepção da banda desenhada deixou de ser exclusiva dos fãs das aventuras juvenis e dos nostálgicos de uma suposta Idade de Ouro e iniciou a sua inscrição no território amplo e transdisciplinar das artes. Sem excluir o património que motivou edições e exposições antes desta década, sem abandonar a herança da comunicação de massas que ditou a sua percepção excluindo qualquer outra abordagem, a banda desenhada abandonou o seu gueto de fãs e nostálgicos e passou a estar à disposição de um público mais vasto e necessariamente heterogéneo. Esta abertura foi acompanhada por projectos editoriais que, no mercado ou nas suas margens, permitiram a edição de autores que até aí não teriam qualquer hipótese de ver o seu trabalho publicado, animando movimentos editoriais que passaram por chancelas como a Polvo, a Pedranocharco ou a Chili Com Carne, bem como edições institucionais associadas à Bedeteca de Lisboa (com a colecção Lx Comics, de autores portugueses) ou ao Salão do Porto (com a colecção Quadradinho).
            
No início deste século, uma outra conjuntura se formou, alterando o panorama que se criara nos anos de 1990 e definindo um outro, bem diferente, marcado pela contenção económica e pela redução do volume de edição. O entusiasmo da década de 1990 em torno da edição criou uma ilusão que não correspondia, apesar de todas as melhorias apontadas, à realidade de um mercado editorial pequeno, com livrarias pouco preparadas para definirem secções de banda desenhada que ultrapassassem a etiqueta do “infanto-juvenil” e com um espaço limitado na imprensa para a divulgação e a crítica de livros em geral. Por outro lado, talvez a ausência de uma preparação sólida para lidar com a gestão editorial e os condicionalismos do mercado do livro por parte de muitos editores (nem sempre com a experiência que um mercado como o do livro exige num país cujos níveis de leitura geral nunca foram famosos) tenha sido responsável por um entusiasmo que se saldou no estrangulamento do mercado, com o exíguo espaço disponível para a banda desenhada sufocado por centenas de títulos ao mesmo tempo.
            
A tentativa de traçar uma interpretação histórico-sociológica das últimas décadas no que à edição de banda desenhada em Portugal diz respeito não tem como passar disso mesmo. Para além da proximidade cronológica, que em caso algum é positiva para uma fixação rigorosa dos factos, quanto mais para uma interpretação, a inexistência de dados fiáveis impede o exercício: o mercado editorial nunca registou os seus dados em termos gerais e rigorosos (situação que não é exclusiva da banda desenhada e que continua a dificultar a análise e o trabalho de todos quantos lidam profissionalmente com a edição, sejam agentes directos ou não), o que nos deixa unicamente com os números das editoras e com as análises que foram sendo traçadas, em jeito de balanço, em sites como o da Bedeteca de Lisboa e em suplementos culturais que têm o hábito de encerrar o ano com uma retrospectiva que, frequentemente, inclui dados mensuráveis. Relendo essa documentação, bem como textos fundamentais como presentes nas actas dos encontros Hoje, a BD, que a Bedeteca de Lisboa realizou em 1996 e 1999, não será um mero exercício de especulação concluir que o encerramento do Salão do Porto, o decréscimo de actividade da Bedeteca de Lisboa (que inclui o fim do Salão Lisboa, a suspensão da colecção Lx Comics e de toda a actividade editorial e, mais recentemente, o encerramento da sala de exposições, que albergava, com alguma regularidade, mostras de autores que maioritariamente não estão editados em Portugal, apesar da consideração que o seu trabalho tem merecido por parte de críticos, investigadores e leitores de outras latitudes), o fim de várias editoras e o abrandamento muito significativo da actividade de outras constituíram os eixos essenciais de uma conjuntura que, provavelmente com a influência de outros factores difíceis de identificar a uma distância temporal tão curta, ditaram, na primeira década do século XXI, o regresso a uma inércia editorial em que a regra voltou a ser o entretenimento.
            
A reacção de autores, editores e outros envolvidos, no entanto, voltou a alterar o cenário entre a primeira e a segunda década do século. As peculiaridades do mercado editorial e o acesso cada vez mais democrático às tecnologias da informação e da comunicação permitiram aos autores portugueses a descoberta de caminhos alternativos ao processo tradicional de edição. Em alguns casos, os mercados estrangeiros constituíram um terreno fértil, tanto no plano comercial como no plano do intercâmbio artístico e da definição de espaços de publicação e divulgação. Os exemplos de autores que conseguiram encontrar o seu espaço na indústria dos comics norte-americanos, muitas vezes integrando equipas amplas e com vários trabalhos a decorrerem em simultâneo, são significativos. Por outro lado, a facilidade de estabelecer contactos, trocas e parcerias com autores e projectos editoriais e artísticos de qualquer ponto do mundo abriu vias interessantes de colaboração, levando vários autores a publicarem os seus trabalhos em países como França, Espanha, Eslovénia ou Rússia, quer com títulos individuais, quer integrando-se em antologias internacionais.
            
Também o acesso facilitado às tecnologias associadas à edição, sobretudo com o desenvolvimento da impressão digital e com a vulgarização de empresas que oferecem serviços que começam na pré-impressão e culminam na entrega do número de exemplares combinado à porta de casa do autor, autores sem espaço no mercado tradicional (e sem intenção de adaptarem a sua criação ao registo considerado “vendável” pelas editoras) editaram o seu próprio trabalho, individualmente ou em plataformas colectivas. É o caso de artistas como André Lemos, Júcifer, Marco Mendes, Hetamoé, Lucas Almeida, Tiago Albuquerque ou Sílvia Rodrigues, e de projectos como a Opuntia Books, Os Gajos da Mula, a Chili Com Carne, o Clube do Inferno, a Imprensa Canalha ou a Sapata Press, bem como de editoras de média dimensão e com um trabalho cuidadosamente gerido, como a Kingpin Books, ou outras que vinham dos anos 90 e souberam adaptar-se à nova realidade, como a Polvo. Com o avançar deste novo século, agora já com quase duas décadas, estes caminhos deram os seus frutos e criaram novos espaços na circulação de banda desenhada em Portugal. Hoje, aquilo a que chamamos mercado já não é um monolito constituído pelo circuito autor-editora-distribuidora-livraria. Há muitos autores que se auto-editam, individualmente ou em projectos colectivos, e muitos projectos editoriais de pequena dimensão que fazem chegar as suas criações aos leitores em espaços que nasceram do esforço colectivo de autores, leitores e outros entusiastas do do it yourself, como as feiras de edição independente (casos da Feira Laica, entretanto descontinuada, da Feira Morta, da Raia, etc) que acontecem em diversos pontos do país, muitas vezes com convidados estrangeiros cuja presença em Portugal acaba por resultar em novos projectos partilhados, novos livros editados em Portugal ou nos países de origem desses convidados. Editoras que vinham dos anos 90, como a Polvo e a Chili Com Carne, e novos projectos como a Kingpin Books, ou, numa escala mais pequena, a El Pep, firmaram-se num espaço que inclui as livrarias (no caso da Kingpin Books, com uma livraria própria, no centro de Lisboa), mas que passa igualmente pela presença nos festivais de banda desenhada e, nalguns casos, pelas mesmas feiras de edição independente onde circulam livros e outras publicações com tiragens menores, por vezes impressas artesanalmente. O mercado reinventou-se e parece ter decidido ignorar as dificuldades do mainstream, criando os seus próprios caminhos e abrindo espaços onde eles não existiam. A vitalidade criativa e editorial de projectos como estes e outros tem assegurado diálogos constantes e frutuosos entre artistas, e entre estes e o público minoritário que os conhece, acabando por alcançar outros públicos e confirmando que a auto-edição, a edição em pequena escala e a atenção aos circuitos não-generalistas que há uns anos se apontava como futuro possível para a edição de banda desenhada em Portugal é, hoje, o seu presente.
            
Longe de caravelas e melancolias preparadas para exportação imediata, os barcos onde navegamos hoje são instáveis. E navegamos todos, os que nunca pisaram um convés, os que andam entre Portugal e o estrangeiro em rotas aéreas low-cost para ganhar a vida, mas também os que tentam chegar à Europa arriscando a vida para fugir da guerra, porque essa ideia de uma nação com as suas fronteiras há muito que se esboroou, para o bem e para o mal. Vivemos aqui, alguns somos daqui desde sempre, outros passámos a ser, porque é aqui que estamos. E aqui é em Portugal, mas não deixa de ser nesse não-lugar criado pela internet, pela globalização, pelo capitalismo, e também pela vontade de conhecer os outros, pela necessidade de circular, pela ânsia de abrir mundos sem ser à força. Temos bom tempo e temos canções, temos corrupção e dificuldades económicas, temos turistas e muitas interrogações. E temos, seguramente, autores com vontade de pensar nisto tudo sem a ilusão de um passado glorificado mas com os pés bem fincados no que somos, fomos e vamos sendo.

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