sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Fotografias e texto da apresentação do livro "Berlim, cidade sem sombras"

No passado dia 9 de Novembro, na Galeria Zé dos Bois, foi apresentado o livro de Tiago Baptista, "Berlim, cidade sem sombras". A apresentação foi feita pelo autor, por Marcos Farrajota e por Joana Miguel Almeida que tão preciosamente pensou e preparou um texto sobre o livro, a quem tanto se agradece, e que se transcreve em baixo. A soirée foi alegrada pelo convívio dos comparsas e alimentada a copos e conversa.




"Eu gosto muito deste livro por várias razões. Mas gosto, particularmente, de ver a banda-desenhada do Tiago que, sem a opacidade da sua pintura, nos permite lê-lo de outra maneira, com mais intimidade a partir dos seus pensamentos narrados pela letra delicada com que escreve as legendas. E, claro, pelos desenhos.

Este livro de pequenas narrativas evoca os três meses que o Tiago passou em Berlim, no contexto de uma residência artística no ano de 2013. Digo “evoca” porque este livro não parte de um diário gráfico utilizado na altura, mas de um registo de memória a posteriori, com todas as hesitações e incertezas que invariavelmente temos ao lembrar uma história que já se passou há meses ou anos. Essas dúvidas – que o Tiago assume – traduzem-se em falas rasuradas, em personagens sem expressão, sem cara. Em desenhos que às vezes são pintados digitalmente e outros numa aguarela fluida quase onírica. Admitindo que as suas recordações se dissolveram no tempo, reflecte também, uma vez que está em Berlim, sobre o lugar da memória cultural: afinal, do que nos lembramos nós? O que é que lembramos e o que é deixamos esquecer? Quem é que merece ser lembrado e esquecido?

Este foi o Inverno menos luminoso em décadas, diz-nos logo que abrimos o livro. E portanto não há sombras. Este foi um tempo difuso e o Tiago estende-o – o tempo – para registar meses mais tarde a sua experiência na cidade. Da memória que reconstrói, e ela é sempre uma construção, já não sabe bem o que aconteceu de facto. Por exemplo, quando visitava uma roulotte chamada “Jenin” para comer um falafel, já não se recordava, se era um mapa que estava inscrito nas paredes da roulotte, ou se eram nomes de pratos. E chamar-se-ia Jenin como a cidade da Cisjordânia ou Jenien com “e”? Noutro momento, recorda o encontro com um amigo que lhe diz que a ponte de Warschauer constituía uma antiga passagem dos judeus para Auschwitz. Seria verdade? Hoje o Tiago tem dúvidas que esta conversa tenha, de facto, acontecido.

Mas o que é certo é que debaixo do chão que pisamos, as camadas de um tempo que passou não deixam de lá estar, mesmo que certos locais e passados continuem, não na sombra, mas como nome do livro sugere, sem sombra. Como é o caso das coisas invisíveis, que não se podem ver, a não ser para quem as recorde, as chame pelo nome, verbalize o seu nome e as sua histórias.

Pergunta-se a dada altura, o autor: “onde estavam as sombras duras, sombrias que são a projecção das silhuetas dos objectos, dos edíficos, das árvores, da nossa própria existência?” Tiago parece surpreender-se, amiúde no seu livro, com o a toponímia que nos faz ver outros mundos ou outros tempos como quando se depara com a praça Anton Saefkow Platz, que evoca o nome de um resistente comunista. Ou quando se depara com um edíficio que fora uma espécie de associação cultural e desportiva do tempo da RDA. Sem referência a isso. A sombra só existe quando em contraponto com a materialidade. Na sua ausência, o Tiago apercebe-se que há “um céu pesado cheio de cinzas que transformou o que existe num todo contínuo tépido, mole, sem consistência, melancólico, indiferenciável e indiferente, quase incolor”.

E neste tempo que o Tiago não viveu, os seus vestígios são encontrados, amiúde, ao longo do livro, comercializados aqui e ali, como evocação de um passado não vivido. Seja no postal com um bocado do muro de Berlim que recebeu do seu amigo, seja na loja de segunda mão em que encontra uma secção de roupa da RDA (um fenómeno aliás muito presente na Alemanha desde a década de 90, designado por Ostalgie – Nostalgia da Alemanha Oriental).

Este livro é um livro auto-biográfico de pequenas histórias, impressões da cidade, focado no quotidiano do Tiago. Passando da experiência da sua residência artística e das dificuldades criativas até ao relato de um feliz encontro com o rapaz de Tondela que trabalha num restaurante, com que aliás o livro termina. Tal como o encontro com o rapaz do falafel que faz o Tiago questionar-se se ele teria vindo ali parar através de uma obscura rota de imigração, também o português que está ali à sua frente no restaurante de comida do Mar Negro, representa essa “humanidade em movimento” própria da “modernidade líquida” (Bauman, 2007). Que tal como o Tiago, não pára, mas a partir de uma perspectiva inegavelmente mais despreviligiada [como o Pedro Moura (2017) bem refere na sua crítica ao livro]. Portanto nesse sentido, este é um livro que é também sobre um um presente ao qual talvez tenhamos que estar mais atentos. Mas é também um livro sobre as várias dimensões do tempo, sobre a relação do passado e do presente. Ou sobre, na expressão de Sharon Macdonald, “past presencing” (2013) , ou seja, modos de sentir o passado no presente.

E nesse sentido, o Tiago na sua banda-desenhada evoca-nos um tempo perdido, eventualmente em desaparecimento, lembrando-nos como o passado é construído – e desenhado – à luz do presente. Nesta mescla entre o passado e o presente, o Tiago dá a estes lugares visibilidade, fá-los existir nos seus desenhos. Bem como às pessoas com quem se vai cruzando e que imprime para sempre neste livro. Nesta cidade sem sombras, como lhe chamou, dá-lhes luz."

Bauman, Z. (2007). Liquid Times, Living in na Age of Uncertainity. Cambridge: Polity Press.

Macdonald, S. (2013). Memorylands: Heritage and Identity in Europe Today. Londres: Routledge.

Pedro Moura. (2017). Berlim. Cidade Sem Sombras. Tiago Baptista (Chili Com Carne). Obtido de http://lerbd.blogspot.pt/2017/10/berlim-cidade-sem-sombras-tiago.html

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