O mundo das coincidências cósmicas é tremendo! Passado alguns meses depois de escrever
estas linhas sobre livros de referência, pimba! eis que aparece o simpático
HQ: uma pequena história dos quadrinhos para uso das novas gerações de
Rogério de Campos.
E quem é o Rogério de Campos, perguntam vocês? Olha, só para começar é mais uma das cabeças da mítica revista
Animal, foi o responsável de introduzir o Mangá no Brasil de forma coerente e agora é o "boss" da
Veneta, uma importante editora brasileira de BD. Curiosamente conheci-o em pessoa no
Festival de BD de Angoulême, em 2020, tendo valido a pena fazer tantos quilómetros para descobrir (sem querer) mais um ídolo da juventude!
O seu livro é uma tentativa de escrever sobre BD de uma forma excitante como
Greil Marcus o fez com As Marcas de Baton (Frenesi; 1999) sobre os Sex Pistols e o fenómeno Punk (
and beyond that!) mas infelizmente, a BD não é tão excitante na sua mitologia como o Rock, e falha nesse sentido. Em compensação invés de ser mais uma história chata da BD, Rogério, como mestiço e periférico cultural que é (e grande profissional do mercado editorial), soube misturar tudo numa narrativa sólida sobre a História da BD evitando os discursos simplistas dos cromos das várias indústrias de BD (o triângulo dourado França-EUA-Japão). Troca tanto e tudo que mesmo quando os capítulos sugerem uma dessas indústrias, ele acabará por falar de noutra coisa que parece não estar ligada. Por exemplo, o capitulo dedicado ao "Mangá" irá parar ao underground norte-americano, quando anuncia o capítulo "France" acabará por falar do grande assalto dos "comics-books" e sobretudo do Mangá no mercado europeu. Parece disparatado, dito desta forma mas não é de todo, muito pelo contrário, como ele nunca se perde e conhece bem os segredos profissionais deste mundinho da BD, tudo vai escorreito como um bom vinho.
E ao misturar "tudo", não deixa os leitores ficarem nos seus guetos predilectos ou os seus "safe places". Ou seja, o perigo de um tarado do franco-belga ou do mangá de só ler o capítulo que lhe é querido é aqui impossível, terá de ler tudo para receber toda a informação que lhe interessa, porque tudo está interligado a dada altura. Cheio de observações interessantes, com capacidade de síntese e uma vontade explorar a política para o mundo da BD (o que os cromos acham isso herético!), só não lhe posso perdoar a ausência de assinalar o Guido Buzzelli como o primeiro verdadeiro artista na BD, as ilustrações centrarem-se quase todos no catálogo da Veneta e a falta de pensamento sobre as "minorias culturais" (que são só muito mais de metade da população do planeta mas enfim!) como as mulheres e não-binários. O texto ficaria ficaria maior mas, meu!, era 2022 quando saiu o livro e a Julie Doucet já tinha sido elegida como Presidenta do Festival de Angoulême nesse ano! Grave! Apesar destes pecadilhos e espartilhos masculinos, eis um livro que faz justiça ao seu título. Não é punk mas é rápido, curto e incisivo!
O norte-americano
Christopher Sperandio voltou este mês a Portugal com uma exposição na
Tinta nos Nervos e trouxe uma série de novos livros seus, um "teórico" e outros de "comix-remix" - o mais recente que saiu pela nossa parceira
Kuš! terá uma resenha minha na próxima
A Batalha.
Comics Making : teaching the technology of comics (Argle Bargle; 2021) é uma colecção de ensaios de Sperandio de como fazer Banda Desenhada à sua maneira, isto é, usando BDs antigas e dando-lhes um belo de um tratamento
"detournement" situacionista para passar novas mensagens (políticas). A ideia não é nova, claro, e nada melhor do que reciclar o lixo da História para fazer Arte nova, como os franceses Samplerman ou o Fredox e o português
40 Ladrões. Para política, o lixo se não for contemporâneo, como faziam os Situacionistas ou fazem os activistas "underground", coloca alguns problemas...
Há um limite temporal-legal que Sperandio utiliza para usar o material dos outros para rapinar. Este tem de estar perdido para os olhos dos advogados da propriedade intelectual, e é por isso que ele (ou o Fredox e o Samplerman, já agora) usa "comic-books" com uma boa idade para cima dos 75 anos de existência, ou seja, quando essas criações entram em domínio público. A questão é como usar essa lixeira popular para as novas lutas sociais e políticas deste século, sem parecer anacrónico? Ou não ser uma dor de cabeça para o autor actual procurar imagens que tenham ainda aura para os dias de hoje? A mim parece-me impossível, especialmente quando não há quase mulheres representadas (uma conclusão que o próprio Sperandio indica numa BD no tal livro da Kuš!) ou "bem representadas" porque elas aparecem como meras companheiras dos homens, submissas e a servirem de isca para serem salvas pelo super-macho com músculos. E africanos ou asiáticos? Estes são também pouco representados, ou pior, quando o são, são subalternos, sub-humanos ou vilões! Não há "detournement" que valha quando a matéria visual é logo limitado em riqueza (ou na mera realidade) humana.
Também não me parece que a evocação à Nostalgia, como arma de arremesso político seja uma boa ideia, porque a Nostalgia é do mais perigoso que há, usada pela Direita para nos adormecer com a retórica do "antes é que era bom". Até a Direita (a alt-right) sabe que mais vale usar uma bonecada Anime para fazer um méme racista e sexista do que usar uma imagem colonialista dos "bons velhos tempos". Esteticamente até parece que Sperandio quer dizer que os jovens de hoje são iguais aos dos anos 50 quando saíram tantos belos mutantes a partir dos 60! Não sei porquê, apetece-me voltar ao Burroughs mas desta vez citando-o: (...) he didn't want any juvenile connections, bad news in any language.
De resto, Sperandio faz uma boa súmula para principiantes sobre a tecnologia de impressão dos materiais e técnicas de como os reutilizar. Um erro num texto sobre a proveniência da palavra "zine" (diz que é de "magazine" e não de "fanzine") põe tudo a perder... Ignorância ou gralha? Ei-de lhe perguntar quando o apanhar por aí!
Como no "post" do ano passado acabei com um indicação a uma obra de referência portuguesa e o tema geral era sobre a raridade deste tipo de trabalhos no mercado nacional, eis que no mesmo ano foi feita outro livro sobre BD portuguesa também pela
SHeITa. E sim, só se pode esperar merda, claro, porque é feita com o pior gosto dos "melhores" editores portugueses de BD. Convenhamos, a começar pela capa, o grafismo e desnecessária impressão a cores (receberam uns belos dinheiros comunitários para gastar à grande e à francesa),
Conversas de Banda Desenhada de
Carina Correia e
João Miguel Lameiras é um terror editorial! Mas como nunca temos testemunhos dos autores de BD portugueses - a não ser quando arrotam postas de pescada nos festivais de BD, seca total! -, torna-se num documento bastante interessante para o público em geral (bom, pelo menos metade do livro) e para o que é especialista. Apesar do plantel escolhido ser um 50/50 de autores desinteressantes e de artistas com voz própria, em linhas gerais, pode ser bom para todos os que leram perceberem como se movem estes criativos em Portugal, e quando possível, o que lhes faz correr sem cansar.
Justamente, raramente se fala de Arte ou BD como Arte, o foco das entrevistas é quase sempre sobre o dinheiro e a carreira. Parece que me repito nestes dois "posts" mas é verdade: mulheres, claro, há uma apenas, a Joana Afonso, que apesar de ser uma boa artista comercial de BD (para quem gosta), é só mesmo isso, uma artista comercial croma de BD; o Luís Louro é uma cagão como sempre foi and we don't give shit; Filipe Melo y su muchacho nem me lembro nada para comentar tal a quantidade de clichés ditos; Osvaldo Medina revela ser um mero mercenário (a atitude dele perante os livros sobre o presidente angolano Agostinho Neto que "biografou" é exasperante) e creio que ele só está neste livro porque tal como a Joana Afonso fizeram álbuns de BD prá SHeITa; Jorge Coelho apesar de se o gajo que desenha prá Marvel revela mais sobre o underground lisboeta que alguma vez os ignorantes dos seus entrevistadores saberão (boa Jorge!); e é quando entram o Nuno Saraiva, Paulo Monteiro e Marco Mendes (os que podemos considerar artistas mais à séria) é que o livro torna-se iluminado com boas doses de poesia, humor, vida e experiências que fogem à mera "Bêdêzinha". Se calhar os outros até teriam algo para dizer (duvido muito) mas com os entrevistadores a serem apenas cromos da BD e da cultura Pop, a fazer piadinhas constantes sobre pitéus e cuja única pergunta repetida até à exaustão (e em alguns casos inútil) sobre um tema contemporâneo é sobre o que é que os autores acham destes tempos "perigosos" do "Politicamente Correcto" (ai ai ai que medo!),... Com perguntinhas destas nunca poderiam ir muito mais longe, parece-me. É pena! Ainda assim como já escrevi, fica aqui um documento importante para a posterioridade, dado que a BD é uma área de que ninguém (generalistas ou especialistas) parece saber nada de nada - incluindo a parte menos interessante como o dinheiro.