The Smiths [texto para o Splaft! - Caderno da Bedeteca de Beja]
- Se fizesse uma boa ópera, quem ma representava?
- E se o Ega fizesse um belo livro, quem é que lho lia?
(…)
- Isto é um país impossível… parece-me que também vou tomar café.
in Os Maias
Se José Smith Vargas (1981, Lisboa) concluísse a BD O Fígado da República? Alguém iria ligar-lhe cartão? Ou se acabasse as BDs sobre a Mouraria que denuncia à “gentrificação” deste bairro lisboeta? O António Costa iria ignorar certamente.
É um país impossível dizem os fidalgos nos Maias. Talvez até seja verdade esta conclusão tão peremptória mas ela serve como desculpa para as personagens de Eça de Queirós nada fazerem das suas vidas pueris porque afinal não passam de nobres de pança cheia. O caso de Smith (prefiro usar Smith a Vargas porque foi assim que o conheci, antes de assinar com os dois apelidos) é bem diferente embora ainda hoje não consiga responder à pergunta “Porque raios é que ele quer fazer BDs para um país que não têm forma de sustentar os artistas que a produzem? Ou um país que não lê BD? Ou que não lê pura e simplesmente?”.
Claro que Smith não está sozinho nesta questão, o que não faltam são autores de BD que teimam em criar páginas que não sabem onde publicar e que ninguém dá um chavo por elas. Tal como esses autores todos, também Smith não se dedica apenas à BD e de alguma forma é um homem dos sete ofícios – o último é ser actor na curta Ponto Morto, de André Godinho.
Formou-se em pintura na ESAD das Caldas da Rainha mas desde o final dos anos 90 que se dedica à BD e à ilustração, publicando aqui e acolá, ou auto-editando fanzines como o Soka (2000) que é um verdadeiro maelstrom de iconografia punk de desenhos de crianças e “híper-colagens”. É aliás, o trabalho de colagem que primeiro será conhecido ao mundo de forma oficial ao participar nas antologias Mutate & Survive (2001) e CapitãoCriCa Ilustrada (2005) editadas ambas pela Chili Com Carne.
Avelino Cidade - um exemplo do interior já que a capa é branca! |
E por falar em adega, pelo meio das actividades criativas está a musical também sempre ligada ao Punk mesmo quando se mete brilhantemente a fingir de músico Pimba como o fazia em Mal d’Vinhos, que em 2004 gravaram um dos mais divertidos discos de sempre. Mais recentemente participou noutras bandas como Casal do Leste e Fotolitus (o encontro improvável entre Brigada Victor Jara e Crass) cujo último álbum, Despreshion das Märr Kathara (2011), incluía uma BD no livrinho do CD. Mas já lá vamos à BD porque primeiro vem a ilustração que Smith tem vindo a espalhar os seus belos cartazes pela cidade de Lisboa e pela internet, produzidos sobretudo para os espectáculos organizados pela Associação Terapêutica do Ruído. Há ainda as capas de discos de outros músicos como o CD de Joana Guerra, por exemplo, belíssimas também!
Bute lá prá BD que é o que nos interessa!
Esta já estava programada no interior do autor até porque ele tinha feito um curso de BD na Gulbenkian, ainda antes de ter ido prás Caldas da Rainha. Pelos vistos, era um programa secreto, que depois de estar liberto do ensino oficial, Smith, de forma tímida começa a produzir BD em 2007. Surge Passeio ao Norte de Portugal – publicada no Destruição (Chili Com Carne; 2010) – em que relata quer um espectáculo dos Mão Morta em volta de Maldoror quer um encontro “pesado” com os Surrealistas de Barcelos. O trabalho tem os seus desequilíbrios no que diz respeito entre o texto e a imagem mas é uma estreia gloriosa para a BD portuguesa que no século XXI passou maus tempos. É raro encontrar autores que se dediquem à “realidade”, seja pela vertente autobiográfica quer pela reportagem ou crónica. Como bem sabemos a maioria da produção portuguesa dedica-se à fantasia, quase sempre de qualidade duvidosa, e que nada diz sobre Portugal e as suas gentes, mostrando que a BD portuguesa quase sempre é uma inutilidade e merece o desprezo generalizado que sofre.
E se muita da BD portuguesa é só escapismo infanto-juvenil – como aliás, a maior parte da produção mundial – ela própria escarra na sua gloriosa génese de Rafael Bordalo Pinheiro. É realmente raro ver obras de autores de BD que usem esta forma de arte para fazer dela arma política, especialmente preocupante quando estamos no milénio que abriu a temporada de caça aos pobres. Daí que não é à toa que o trabalho de Smith raramente se encontre no meio normalizado do mercado da BD mas em formatos “underground” como o disco Apupópapa (2010) que contestava a visita do “Papa Ratazana” a Portugal - Smith faz uma BD no fanzine que acompanha o CD e participa também com música através dos Focolitus - ou em jornais libertários como o Mapa : Jornal de Informação Crítica onde se encontra uma secção sua, o Mapa Borrado. Esta secção é na realidade uma crónica em formato de tiras humorísticas que relatam as alarvidades deste país, de forma elegante e poética – de tal forma que lembram a verve de Smith em Casal do Leste. É curioso que o “texto” de Smith consiga ser adaptado a estes dois formatos tão diferentes entre si. Temos artista!
Apesar da “marginalidade” onde se encontra o seu trabalho isto não significa que ele, de vez em quando, não dê uma perninha no mundo da BD e faça algumas “curtas”, como aconteceu com uma adaptação de um texto de José Gomes Ferreira para a edição comemorativa dos 20 anos do Mesinha de Cabeceira (Chili Com Carne; 2012) ou a biografia de Niko Pirosmanashivili para o blogue de Geraldes Lino. São duas distracções interessantes que aconteceram porque o autor foi assediado pelos editores dos projectos, no caso de “Niko” grande parte do trabalho já estava feito e foi o Sr. Lino que instigou Smith à sua conclusão. Nas gavetas do autor estão lá mil projectos!? Nada se sabe! E ainda menos se sairão dali, como o caso do “Fígado”, por exemplo.
Começado em 2010, a BD intitulada O Fígado da República mostra uma vertente clássica, sólida e eficiente da narração, adaptando excertos de Os Operários (1922) de Raul Brandão intercalados com episódios de ficção. A acção passa-se em 1918, no meio do turbilhão republicano e os seus paradoxos frente à classe operária, e relata a história de uma comuna que se instala no Alentejo. Smith chegou a auto-editar o primeiro capítulo em formato fanzine mas os novos capítulos, "Dia de Entrudo" e "Trapeiros", encontram-se nessas misteriosas gavetas. No Festival de Beja poderão lê-los nas paredes da exposição! Que sorte! Que felicidade! Embora Felicidade a sério, como toda a gente sabe, só há quando vemos um bófia a cair pelas escadas abaixo… Não sabemos quando e como estes capítulos serão impressos, isto implica que os mais atentos à “série” terão de sofrer A GRANDE ESPERA – quem segue o Berlin de Jason Lutes sabe o que isto significa! Como obra, desde já aviso que estamos longe das dolorosas adaptações literárias à “antigo regime” (da geração O Mosquito e Cavaleiro Andante) ou do espírito social "light" de Obrigado, patrão! A miséria proletária é mostrada sem pudor, bem como a situação de uma nação que vive um Capitalismo Cego e protegido pelo poder sem ter qualquer cuidado pela sua população e raramente relatado em BD, de memória só me lembro de Relvas (sobre os tempos dos Descobrimentos), Miguel Rocha (no Salazarismo), Marco Mendes (no tempo dos Recibos Verdes) e Amanda Baeza no metafórico e atemporal Our Library. Apesar de se situar em 1918, este “Fígado” foi pensado para comemorar o Centenário da República embora bem que lhe poderíamos dar um salto quântico para os dias de hoje, em que temos assistido a fenómenos similares cerca de 90 anos depois como a nossa emigração de jovens, os cortes de pensões e de outras conquistas sociais, a privatização de tudo que o Universo criou neste cantinho europeu e a nojenta equação da Fortaleza Europa e do esclavagismo de imigrantes.
E por falar em mais “contos da população”, em 2011, o autor começa a fazer "bd-reportagens" no seu blogue sobre os acontecimentos que agitaram esse ano a cidade do Porto, mais especificamente, a expulsão e emparedamento do edifício onde decorria o projecto social auto-suficiente e autogerido Es.Col.A no Alto da Fontinha. É um relato feito à distância, através das comunicações que o autor vai recebendo pelos meios oficiais e pelas redes sociais, desta verdadeira luta entre o Estado Capitalista Gágá versus a vontade de um Bairro em controlar o seu destino sem prejudicar ninguém – muito antes pelo contrário! Logo a primeira página sobre o despejo, Smith consegue expor para quem ainda não percebeu do ridículo e do paradoxo total a que a nossa sociedade atingiu. Ele só teve de dar enfase ao que um cão do PSD ladrou na rádio: Este comportamento [de ocupação de espaços devolutos e ajuda à população desfavorecida] é altruísta mas não está correcto. Olha se a moda pega… Em 2012 o jornal gráfico-político Buraco dedica todo o seu número quatro à história da Es.Col.A., e compila essas BDs de Smith que serão as únicas páginas a registar em “arte narrativa” o infeliz final deste processo com requinte fascista.
Em 2012, a Casa da Achada / Centro Mário Dionísio edita um livrinho intitulado Escrever Devagar com ilustrações e de textos de vários artistas e escritores, por lá encontra-se a BD No recolhimento de S. Cristóvão, parceria do escritor e dramaturgo Miguel Castro Caldas (1972) com Smith. Trata-se de um excelente uso da BD para registrar memórias de senhoras da terceira idade em casas de recolhimento da Mouraria, cujas intervenções nem sempre são tão cândidas como se poderia esperar, elas estão bem cheias de histórias para nos oferecer que vão desde gatinhos à selva africana. No entanto, é o princípio e o fim desta BD que mais interessa (a D. Aldina e D. Alice Gaveta que me perdoem) porque são uma crítica à cidade de Lisboa e ao “estado da nação”. Portugal tornou-se no INATEL da Europa, o que não seria mau per se caso os seus habitantes não vivessem uma degradação das suas condições de vida e de mudança (para pior) dos seus hábitos quotidianos. Uma das zonas mais afectadas é a Mouraria, e como Caldas e Smith a frequentam planeiam um livro sobre as mudanças que estão a ocorrer neste bairro popular. Ou deveria escrever “ex-bairro popular”? A Mouraria em breve será mais uma estação de turismo, com os locais a servirem de figurantes para os “bifes” tirarem-nos fotografias, afinal de contas até os ciganos da Baixa que vendem haxixe falso também já começam a ter um ar “gourmet”.
O Eça escreveu um calhamaço para este país com graves problemas de analfabetismo mas ficou prá história. Tem piada Os Maias embora sirva mais para melgar os estudantes do secundário e a incentivá-los a deixar de ler - se não fossemos um país católico, os alunos deviam adorar ler A Relíquia! Li em qualquer lado que Eça no final de carreira esperava viver dos seus livros, o que lhe foi uma decepção. Espero que não venha a ser este o destino de Smith, não só o de melgar estudantes no ano de 2094 mas também o de ficar decepcionado por “passar ao lado” enquanto estiver vivo e activo, com ou sem Factura de Consumidor Final.
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