João Paulo Cotrim, the Smartest Kid on Earth
Ontem
Cotrim era um homem muito generoso e dos mais inteligentes que conheci.
O seu lugar de Director da Bedeteca de Lisboa permitiu-lhe fazer tudo para mostrar uma Banda Desenhada diferente do mofo imundo que em que vivia. Já tinha mostrado, em parceria com Renato Abreu, como deveria ser a BD do futuro com a revista Lx Comics mas com a Bedeteca cristalizou o passado - recuperando Rafael Bordalo Pinheiro, Cottinelli Telmo, Carlos Botelho, Sérgio Luiz e Fernando Bento em monográficos mas também com a publicação de investigações sobre a História da BD portuguesa. Incentivou um presente-urgente com exposições estrangeiras da vanguarda europeia - Amok, Fréon, L'Association -, encomendando obras e livros, apoiando as fracas editoras que existiam na altura e os novos autores cheios de tusa recuperando para eles o título Lx Comics numa colecção de "comic-books", formato adorado na altura. Muitos dos nossos autores tiveram o seu primeiro livro publicado nesta colecção, logo eu e o Pedro Brito nos primeiros dois números e mais tarde André Lemos, Rafael Gouveia, João Chambel, Pepedelrey, Isabel Carvalho, Pedro Zamith e Francisco Sousa Lobo, citando apenas aqueles que foram/são associados nossos ou que publicamos com mais frequência. Houve mais artistas em 17 números!
O futuro também estava previsto, uma Bedeteca que seria um centro cultural. Tudo estava preparado com toda uma nova geração de artistas e editores a produzir obras do seu tempo. Depois, foi tudo à vida, lentamente, perdoem-me o pudor místico, voltando a BD a algum retrocesso dos anos 90. Nem tudo regrediu, havia mais agentes em marcha, felizmente.
Hoje
Se o Presidente o homenageia, aposto que ele nem sabe o que é uma Bedeteca - nunca o vi a frequentar uma. Se há centenas de artistas e escritores a relembrarem Cotrim nas suas redes sociais, por outro lado, muita da gente da BD ignora-o. Não sabem o que ele fez e temo, dado que a cena é reacionária, que deverão arrotar postas de pescada imundas em breve. Talvez o silêncio ou ausência de discurso dos ditos amantes da BD seja uma benesse.
Na BD portuguesa, um lado estranha Cotrim e do outro (público em geral ainda) se estranha o que é a BD. Só José Marmeleira no Público soube escrever sobre um Cotrim equilibrado nos mundos da imprensa, literatura, edição e "bonecada" - será que ele gostava do Jimmy Corrigan? Não me lembro... Só me lembro da sua cara de gato traquinas.
Hoje, a actual "gestora" da Bedeteca de Lisboa, a Junta de Freguesia dos Olivais, anunciou que vai fechar o equipamento para obras. A coincidência não poderia de ser de pior gosto, ou digna de conspiração cósmica. Espero, no entanto, que seja um bom sinal para tratar da incúria e desinvestimento de uma década da Câmara Municipal de Lisboa e da dita Junta em relação ao palacete "farsolas" (assim Cotrim referia o Palácio do Contador-Mor) e ao seu acervo. Veremos...
Amanhã
Gostaria de ser mais optimista mas o que tenho visto do lado da cena da BD, o trabalho de Cotrim cairá em ignorância, como toda a Cultura em Portugal. Se se recuperam certos autores de outras áreas artísticas aqui e ali, na BD tudo é fatal e no máximo aposta-se no R.B. Pinheiro ou no Stuart. O resto não parece interessar a mais ninguém.
Para que serve uma Bedeteca no século XXI? Para combater a ignorância sobre e do próprio meio. Cotrim, o "rapaz mais esperto do mundo" já o sabia há 25 anos atrás.
Marcos Farrajota
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